O Arte Ocupação é uma proposição de Milla Jung realizada em colaboração com artistas, ativistas, professores e alunos das escolas ocupadas no Paraná em 2016, que por meio de intervenções diretas, realizou oficinas¹, ações, relatos, debates, roteiros, entrevistas, traduções de textos, reuniões e finalmente produziu trabalhos, audiovisuais e sonoros, constituindo uma rede de ações/situações que problematizam a experiência desse agrupamento voluntário que são as ocupações secundaristas e universitárias no Brasil, em 2016. Durante esse tempo de acontecimento e de espelhamento mútuo entre artistas, alunos e professores, surgiram questões e embates que acabaram por se tornar um eixo condutor. Este trabalho acabou por se tornar objeto de tese de doutorado no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais na ECA/USP, intitulado da seguinte forma: Arte Ocupação, práticas artísticas e a invenção de modos de organização².
Deste modo, o Arte Ocupação ocupou as ocupações percebendo-as por meio do que chamamos de condição-ocupação, termo que especifica o tempo além do fato histórico, mas em sua possibilidade de ser um devir de cada sujeito ali implicado. Uma condição de onde surgem os embates que traçam a cartografia de nossa experiência, a dizer, a transformação da dimensão psicológica do sujeito que participa de uma ocupação.
Quando as ocupações começam o que está colocado é um vetor que aponta para o fora, uma reivindicação bastante pontual para certas instâncias da sociedade. Mas durante as ocupações o tempo corre diferente e por isso rapidamente constrói-se, em estado de urgência, uma cena inédita que dê conta daquele espaço-tempo provisório, num estar junto acima de tudo. Assim, no exercício para falar o imprescindível, pontuar o fundamental e colocar-se por inteiro, os corpos chocam-se, resvalam-se e enfrentam-se. A linguagem expande-se. Todos são afetados, contaminados e consequentemente, o que em princípio se direcionava para este fora, gira e passa a demarcar também um dentro, num deslocamento para uma arquitetura-situação de construção de comunidades em espaços improváveis.
Estar-ali
Dimensão psicológica
Fala-posição
Ser-político
Desejo-ação
Ocupar e existir
Arquitetura-situação
voz
.
Tornar visível a posição a partir da qual o sujeito fala é um também um trabalho de alteridade, um trabalho de implicar-se na fala-posição do outro. O jogo exercitado do que é comum [x] singular afina os princípios constitutivos do estar-ali nas ocupações. Só assim, nesse refinamento, é possível um eixo reflexivo de compreender-se naquilo que se compreende.
Uma percepção da qual nasce uma outra questão que nos interessa nesse processo que é a da apropriação do desejo como força de ação. Esse desejo-ação é enfim o que articula a potência das ocupações como acontecimento, não puramente como fato histórico, mas fundamentalmente como a inscrição efetiva, a médio e a longo prazo do ser-político. Nesta matemática comum constitui-se o nosso assunto nas ocupações, ou assim dizendo, a sua voz.
Contexto
No segundo semestre de 2016, as ocupações secundaristas emergem rapidamente e tomam o país tornando-se o palco da maior onda de protestos de estudantes secundaristas do mundo7. Sem a cobertura da mídia, mas com pautas definidas (contra o desmonte e precarização do ensino público que inclui a aprovação da PEC 241 que congela os investimentos públicos por 20 anos, contra uma reforma do ensino médio proposta e organizada por agentes de instituições privadas da educação, contra a proposta de “Escola sem partido”, entre outras) os secundaristas posicionam-se e tornam-se protagonistas da luta em nome do sistema público de educação. Na esteira das insurgências de junho de 2013 (que começou com o movimento Tarifa Zero contra o aumento no preço do transporte público) e das ocupações nas escolas secundaristas de São Paulo em 2015 (que tinham outras pautas, estaduais, como por exemplo, a reorganização escolar executada por Geraldo Alckmin e a Máfia da Merenda), as ocupações de 2016 espelharam também movimentos revolucionários internacionais, tais como a Primavera Árabe, que aconteceu no Oriente Médio e Norte da África a partir de 2010 e depunha contra às condições de vida e às ditaduras políticas daqueles países, o Movimento Occupy em 2011 em Manhattan, nos Estados Unidos, que depunha contra o poder financeiro e o responsabilizava pela Crise Mundial e pela discrepante desigualdade social, ou ainda o 15-M ou Indignados na Espanha, também em 2011, que reivindicava mudanças radicais no aparato democrático e na representação política do País.
Assimiladas algumas ferramentas e inventadas outras, o que os alunos secundaristas fizeram nas ocupações de 2016 no Brasil foi montar de forma bastante orgânica e horizontal um novo modo de atuar a política, resgatando o espaço público como território público. Articulando as questões práticas a partir de um modelo colaborativo de gestão, que se delineou nas assembleias, jograis, aulas públicas, manifestações, tarefas diárias, arrumações e consertos das escolas, na execução da segurança e num sistema de comunicação, os secundaristas rapidamente ganharam autonomia que refletiu-se na aquisição de um determinado vocabulário político, novo e instituinte. Ainda foram alvos da tentativa de criminalização do movimento por parte da mídia e de parte da sociedade, que insistiam em chama-los de “invasores” e os desmoralizavam alegando que as ocupações eram a desculpa para, por exemplo, o uso de drogas ou sexo livre, também estiveram expostos aos ataques de movimentos reacionários como o MBL (Movimento Brasil Livre) e ainda ao aparato jurídico do Estado que os apontou como ameaça à ordem e prejuízo a milhões de jovens que não poderiam fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), devido ao espaço físico ocupado.
As ocupações, como campo de disputa cultural, ressignificam a noção de cidadania, inclusive tornam visíveis o surgimento de outros sujeitos políticos, resultantes das políticas de redistribuição de renda, os chamados “desorganizados”8, sujeitos culturais, de nenhum partido ou instituição, que até então não se viam representados. Para Peter Pál Pelbart essa ressignificação diz respeito a inventar modos inaugurais de vida abrindo um campo de possíveis, criando novas formas de resistência e ação quando o trivial passa a ser intolerável9. Entra em questão a inflexão possibilitada por essa “outra geografia da conflitualidade” na qual a potência psícopolítica recusa as formas de vida disponíveis, esgota-se frente à noção de produtividade, consumo e representatividade política e abre esforços, linhas de força e desejo para o novo. O novo como dispositivo de imaginação social e política.
Proposições do Arte Ocupação:
Jogral (Proposição sonora, 9’46”)
Texto de Jogral público das ocupações + Manifesto anarquista do grupo Tiqqun + poema Primeira Manhã de Almada Negreiros. Participação aberta e coletiva, com as vozes principais de Ricardo Corona, Guillherme Jaccon, Lena de Helena e Giorgia Prattes. Captação de áudio Felipe Prando, edição sonora de Diego Nunes e edição de vídeo de Vivaldo Vieira Neto.
Corpos que se descobrem como corpos que se manifestam (Instalação em vídeo, 4’17”)
Texto de Milla Jung com trechos do livro Homens e não de Elio Vittorini, música Primeira Infância dos Tribalistas, voz de Glaucia Andrea Domingos, captação de áudio de Felipe Prando e edição de Vivaldo Vieira Neto.
Mato (Vídeo, 3’47”)
Com atuação de Ana Júlia Ribeiro, captação de imagem Felipe Prando e edição de vídeo de Rafael Bertelli.
A Revolução Francesa (Instalação multimídia, 6’32”)
Com aula, texto e atuação de Professor Gasparetto, captação de imagem Felipe Prando e edição de vídeo de Vivaldo Vieira Neto.
Colar de Chaves (Vídeo, 2’31”)
Com atuação de Greyce Santos, texto de Milla Jung, captação de imagem Felipe Prando e edição de vídeo de Vivaldo Vieira Neto.
Texto de referência traduzidos para o português
Sobre el Militante Investigador - Colectivo Situaciones (09/2003)
A arte como produção de modos de organização – Marcelo Expósito (MUSAC, León, 2014)
Jogral _ Proposição sonora _ 9’46”
Jogral _ Versão 1 Ricardo Corona _ 8’38”
Jogral _ Versão 2 Guilherme Jaccon _ 7’58”
Jogral _ Versão 3 Lena Muniz _ 7’59”
Jogral _ Versão 4 Giorgia Prates _ 7’41”
A peça Jogral é uma proposição sonora que foi executada dia 1º de abril de 2017 no pátio e no auditório da Reitoria da Universidade Federal do Paraná por cerca de 30 convidados, os quais tinham estado direta ou indiretamente envolvidos com as ocupações no Paraná. A peça sonora foi performada para ser gravada e seu áudio passou a integrar o acervo de proposições do Arte Ocupação. O texto final do jogral é baseado em três fontes diferentes: texto do jogral falado pelos alunos que ocuparam o Núcleo Regional de Educação em Curitiba, no dia 31/10/2016, em reação à determinação da justiça de reintegração de posse e desocupação de 25 escolas estaduais, trecho do poema Primeira manhã (1915-1945) do artista e poeta português Almada Negreiros e trechos do Manifesto Anarquista do grupo Tiqqun – Orgão Consciente do País Imaginário. Estes três textos, com diferentes origens e datas distantes entre si, abordam a mesma questão e sobrepô-los pretendeu ser um modo de atualizar os versos de Almada Negreiros e do Manifesto do Tiqqun em relação aos fatos políticos atuais do Brasil.
Ficha técnica:
Participação aberta e coletiva, com as vozes principais de Ricardo Corona, Guillherme Jaccon, Lena de Helena e Giorgia Prattes. Captação de áudio Felipe Prando, edição sonora de Diego Nunes e edição de vídeo de Vivaldo Vieira Neto.
Participantes do jogral: Lena de Helena, Lídia Sanae Ueta, Débora Santiago, Fábio Pereira, Aline Moraes, Giorgia Prates, Célia Cardoso, Magda Zani Silva, Walter Gibson, Lyah Dannemann, Edílson Cordeiro, Maria Inês Cavichiolli, Carolina Prando, Janaína Matter, Eleine Spinelli, Stephanie Freitas, Eliana Borges, Patrícia Del Claro, Alexandre Macedo, Leonardo Auchnitz, Greyce Santos, Ricardo Corona, Guilherme Jaccon, Luana Navarro e Felipe Prando.
JOGRAL
Vermelho – coro
Preto – um
Azul, verde, lilás, vinho - individuais
Nós, do movimento estudantil,
Nós, do movimento estudantil,
estamos aqui hoje
estamos aqui hoje
ocupando
ocupando
o Núcleo Regional de Educação
o Núcleo Regional de Educação
como uma forma de reforçar
como uma forma de reforçar
O nosso movimento
O nosso movimento
contra a medida provisória 746
contra a medida provisória 746
e a PEC 241.
e a PEC 241.
Até que o governo Temer nos ouça.
Até que o governo Temer nos ouça.
Ao contrário do que dizem,
Ao contrário do que dizem,
O nosso movimento está organizado
O nosso movimento está organizado
e as atividades do Paraná Previdência
e as atividades do Paraná Previdência
irão funcionar plenamente.
irão funcionar plenamente.
Ninguém aqui tem a intenção
Ninguém aqui tem a intenção
de vandalizar
de vandalizar
nenhum espaço público.
nenhum espaço público.
Estamos somente lutando
Estamos somente lutando
e isto é nosso direito.
e isto é nosso direito.
Quando eu cheguei devia ser tarde,
Quando eu cheguei devia ser tarde,
já tinham dividido tudo
já tinham dividido tudo
pelos outros e seus descendentes.
pelos outros e seus descendentes.
Só havia o céu por cima dos telhados
lá muito alto para eu respirar e sonhar.
Tudo o mais aqui em baixo
era dos outros e seus descendentes.
Dos outros e seus descendentes
A terra inteira/ inteira
e o mar/ mar
e o ar/ ar
…
tudo medido,
dividido tudo a régua e compasso
pelos outros e seus descendentes.
No mundo inteiro não faltava ninguém
DEPOIS dos outros e seus descendentes.
…
A terra inteira era estrangeira
E até este pedaço onde nasci.
Não me deixaram nada,
nada mais do que o sonhar.
Eu que sonhasse!
E eu que amo a vida mais do que o sonho hei de ficar aqui?
Aqui entre os outros e seus descendentes?
Mas eu não era nenhum dos outros e seus descendentes.
Também vimos pelos caminhos,
quantos como nós,
à procura de tantos como eles.
Perdidos, vão perdidos?
não! não achados,
não achados ainda.
Nascer é o feito dos outros. O nosso é depois de nascer.
Vinte anos de um sono eriçado de cercas de arame farpado.
De um sono dos corpos, imposto pelo toque de recolher.
Vinte anos de contrarrevolução.
O passado não passa.
Porque a guerra continua. Se ramifica. Se prolonga.
Se prolonga.
paz armada
Imperceptível guerra civil.
guerra civil!
De repente surgia,
como saído de alguma região subterrânea da civilização,
todo um contra-mundo de subjetividades
que não queriam mais consumir,
que não queriam mais produzir.
que já não queriam nem mesmo ser subjetividades!
complexa máquina de neutralizar o que é portador de intensidade
Uma máquina de desativar TUDO o que poderia explodir.
Desativar
os riscos,
os corpos indóceis,
as agregações humanas autônomas.
FIM/FIM/FIM
[Silêncio, 5”]
A gente tá recomeçando.
Se olhar nos olhos e se dizer que a gente tá recomeçando.
Que todos saibam,
o quanto antes.
Acabou-se a resistência passiva,
o exílio interior,
o conflito por subtração,
a sobrevivência.
A gente tá recomeçando.
Em vinte anos, a gente teve tempo pra ver.
A gente entendeu direitinho.
A demokracia para todos,
A luta “antiterrorista”,
os massacres de Estado,
a reestruturação capitalista e sua Grande Obra de depuração social,
por seleção,
por seleção,
por precarização,
por precarização,
por normalização,
por normalização,
por ”modernização”.
por ”modernização”.
A gente viu, entendeu.
entendeu.
Os métodos e os objetivos.
Os métodos e os objetivos.
O destino que ELES reservam para nós.
que ELES reservam para nós
E o que ELES nos negam.
O que ELES nos negam
O estado de exceção. As leis que colocam a polícia, a administração, a magistratura acima das leis.
Acima das leis!
A judicialização, a psiquiatrização, a medicalização de tudo o que sai do
quadro.
De tudo o que escapa!
Recomeçar quer dizer: sair da suspensão.
Restabelecer o contato entre nossos devires.
Partir,
de novo,
dali onde estamos,
agora.
Por exemplo, há golpes que ELES já não nos darão mais.
O golpe da “sociedade”.
A transformar.
A destruir.
A tornar melhor.
O golpe do pacto social.
Já não nos darão mais o golpe?
Recomeçar quer dizer:
entrar em desmobilização,
Derreter um corpo com uma configuração pública de atributos.
Quer dizer… derreter os atributos
Na okupa, na orgia, na revolta, no trem ou na cidadezinha ocupada.
Nos encontramos.
como singularidades quaisquer.
comum presença
comum presença
comunismo
como a necessidade de espaços de noite,
onde possamos nos encontrar
para além de nossos predicados derretidos.
COMO FAZER?
Não o quê fazer.
Como fazer?
COMO desertar?
O que se passa entre os corpos numa ocupação é mais interessante que a própria ocupação!
O que se passa entre os corpos numa ocupação é mais interessante que a própria ocupação!
Devir atento ao ter-lugar das coisas, dos seres.
A gente não critica o Império.
A gente se opõe às forças dele.
Ali onde a gente tá
Nas zonas de sombra sobre os mapas do Império
Subterraneamente.
Os que reivindicam outra sociedade fariam melhor começando por ver
que já não existe sociedade.
…que já não existe sociedade.
COMO FAZER? é a pergunta das crianças perdidas.
A revolta das crianças perdidas.
O fio da transmissão histórica foi cortado. Até mesmo a tradição
revolucionária nos deixa órfãos. Sobretudo o movimento operário.
Mais que de novas críticas, necessitamos novas cartografias.
Não cartografias do Império, mas das linhas de fuga para FORA dele.
Os corpos se unem.
Recuperam o fôlego.
Conspiram.
O que responde à pergunta Como fazer?
GREVE HUMANA!
A greve humana responde a uma época em que os limites entre trabalho e
vida acabam.
Em que
consumir e sobreviver,
praticar esportes,
fazer amor,
ser pai
ou tomar Prozac
Tudo é trabalho.
O Império pôs tudo para trabalhar.
A greve humana é a greve que, ali onde ELES esperavam
reação previsível E tom indignado,
PREFERIMOS NÃO.
PREFERIMOS NÃO.
Esquiva-se ao dispositivo.
Satura-o.
Explode.
Fazer os cidadãos petrificados compreenderem
que mesmo que não entrem em guerra,
já estão nela de qualquer jeito.
Que ali onde ELES dizem que é isso ou morrer,
é sempre,
na realidade,
isso E morrer
Corpos que se descobrem como corpos que se manifestam _ Instalação em vídeo, 4’17”
Ficha técnica:
Texto de Milla Jung, com trechos do livro Homens e não de Elio Vittorini, música Primeira Infância dos Tribalistas, voz de Glaucia Andrea Domingos, captação de áudio de Felipe Prando e edição de Vivaldo Vieira Neto.
Mato, 3’46”
Com atuação de Ana Júlia Ribeiro e cenas de seu discurso na Assembleia Legislativa do Paraná em outubro de 2016, captação de imagem Felipe Prando e edição de vídeo de Rafael Bertelli.
Colar de Chaves _ Vídeo, 2’31”
Ficha técnica:
Atuação de Greyce Santos, texto de Milla Jung, captação de imagem Felipe Prando e edição de vídeo de Vivaldo Vieira Neto.
Incorporado o colar, o mundo para de enclausurar-se
Movimento contrário, fluxo de aberturas
Fundar, entretanto, passado seu encanto, requer esforço
É um trabalho incessante de pormenores e por maiores
Vê sua forma no corredor e caminha
em direção às salas de aula
Abre, uma a uma, cada porta
Só para ter certeza que pode mesmo abri-las
E logo as fecha, rapidamente
...Sua responsabilidade
Diante de tudo que a olha, torna-se outra,
Em relação ao passado e ao futuro
Tem os pés fixos no chão
Sabe onde está a direita e a esquerda
Sabe também que a imensidão é lilás
E com o colar no pescoço
Acontece
A Revolução Francesa _ Instalação multimídia, 6’32”
Com aula, texto e atuação de Professor Gasparetto, captação de imagem Felipe Prando e edição de vídeo de Vivaldo Vieira Neto.
Imagin(Ação): narrativas poético-políticas para estados de crise:
atelier-oficina para manifestações-exposições-ópera.
A Proposta de oficina Imagin(Ação): narrativas poético-políticas para estados de crise: atelier-oficina para manifestações-exposições-ópera surgiu com o propósito de ampliar a imaginação poética como recurso de ativismo político. A finalidade de ministrá-las nas escolas ocupadas era dispor referências e ferramentas da teoria e da prática da arte aos estudantes para montarmos uma exposição/manifestação que conferisse às ocupações sua verdadeira face estética, que não aquela submetida aos desígnios midiáticos. Como referências fundantes, percorremos os movimentos político-sociais e antiglobalização na Europa e os movimentos de resistência à Ditadura na América Latina, apresentando alguns expoentes como as festas de rua do Reclaim the Streets, os projetos imagéticos e estratégicos contra-midiáticos do Las Agencias, as sátiras táticas dos Book Blocks e dos Pink Blocks, o movimento Disobediency, as manifestações inventivas dos italianos Tute Bianche, as estratégias de inversão do EZLN (Neo-Zapatistas), o humor poético do Poesia Viva, de Paulo Bruscky, o tocante Divisor de Lygia Pape, a suspensão causada pelo El Siluetazo e a força dos Escraches na Argentina.
Entre os vários artistas que aceitaram participar das oficinas, citamos Lena de Helena, Luana Navarro, Lidia Sanae Ueta, Felipe Prando, Elenize Dezgeniski, Vivaldo Vieira Neto, Marcio Juliano, Glaucia Andrea Domingos, Guadalupe Presas, Debora Santiago, Fabio Pereira, Aline Moraes, Simara Ramos. Outros se juntaram momentaneamente em algumas ocasiões pontuais. As escolas a que fomos são as seguintes: em Pinhais, no Paraná, a Escola Castelo Branco, em Curitiba, o Colégio Estadual do Paraná, a Escola Lysimaco Ferreira da Costa, a Escola Estadual Loureiro Fernandes, o Instituto de Educação do Paraná, o Colégio Estadual Professor Algacyr Munhoz Maeder, e também em Curitiba, na Universidade Federal do Paraná, o Departamento de Artes (DEARTES) e o Departamento de Comunicação (DECOM).
Nossa primeira intenção era a de produzir as imagens (fotos, cartazes, fantasias, espelhos) que formatariam uma Manifestação Ópera englobando várias escolas ocupadas de Curitiba e região. Porém, muito rapidamente, compreendemos que nossa expectativa (a dos artistas e não a dos ocupas) sobre a Manifestação Ópera já era preenchida em cada oficina, em cada relato em que a narrávamos. A necessidade de estar nas ruas, além de certa impossibilidade prática, passou e entendemos que o acontecimento imaginário daquela manifestação era suficiente pois já impregnava os ocupas de vontade e desejo de ação política.
A arte como produção de modos de organização
Apresentação de Marcelo Expósito no Museu de Arte Contemporânea de Castilla y León, MUSAC, em 2014.
Basicamente, a inquietude é...
Como podemos, de uma maneira muito decidida, sair de um enfoque sobre a arte, a crítica, a historiografia da arte, que rompa com a tradição objetocêntrica ou centrada no objeto? Como, de verdade, podemos começar a falar de práticas artísticas sem nos preocupar em absoluto pelos objetos, pelas coisas materiais que se produzem ou, em qualquer caso, tratar os objetos ou essas coisas materiais, os objetos que se produzem, como condição para pensar a prática da arte de uma maneira diferente, que eu proponho que seja, e como diz o título da conversa de hoje, como produção de modos de organização?
Talvez pareça uma ideia meio visionária, vanguardista, mas na realidade, para sustentá-la, basta nos remetermos a dois textos de Walter Benjamin dos anos 1930 que, como já podem supor, são: “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” e “O autor como produtor”. Um do ano 1934, e o outro de 1936.
A estes dois textos muito conhecidos de Benjamin, talvez não se tenha prestado tanta atenção no âmbito da Filosofia como se presta atenção habitualmente aos seus textos aparentemente centrais.
O texto “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” é um texto evidentemente muito usado na História e na crítica de arte, mas seguramente é um texto no qual se prestou atenção com más interpretações em sua leitura.
No meu modo de ver, os títulos destes dois textos estão equivocados. “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” parece que fala da obra de arte, “O autor como produtor” parece que fala do autor.
Na realidade, o texto sobre a obra de arte não fala tanto da obra, mas da produção do espectador, e o que propõe é descentralizar o conceito de obra para acabar falando como os dispositivos artísticos produzem um determinado tipo de subjetividade espectatorial. Enquanto “O autor como produtor”, que parece que fala sobre autoria, efetivamente, o que propõe é descentralizar a figura do autor para falar do modo de produção da prática literária, neste caso, estrito ao que o texto se refere. Ou da produção cultural ou da prática artística, se quisermos, e de modo muito mais geral, como criação/invenção de novos modos de produção.
Eu proporia entender esta questão da organização dos modos de produção de uma forma também mais ampla para pensar os modos de organização, isto é, a produção como organização ou a organização da produção.
O equívoco dos títulos destes dois textos fundamentais decorre do fato de Benjamin propor em relação a estas figuras centrais da modernidade, a obra e o autor, justamente descentralizá-las para colocá-las à margem ou condicioná-las a estas outras questões que acabo de mencionar. Por um lado, no caso de “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, a obra é pensada como um dispositivo de produção de subjetividade ou de politização através da subjetivação espectatorial no interior de um dispositivo artístico. E no caso de “O autor como produtor”, o trabalho do autor é visto como invenção de modos de produção ou como invenção de modos de organizar a produção.
Certamente, o que Benjamin coloca em alguns momentos de modo um tanto especulativo ou que parece que é um tanto especulativo está baseado fundamentalmente nas experiências artísticas, teatrais, cinematográficas materialistas, soviéticas, comunistas, nos anos 1920 e 30. Fundamentalmente, o modelo ao que Benjamin se refere e que, de fato, cita literalmente em “O autor como produtor” é o modelo do trânsito das artes construtivistas – das artes plásticas, do teatro construtivista – às práticas produtivistas na União Soviética entre os anos 1920 e 30.
O trânsito do construtivismo ao produtivismo não é muito conhecido porque de fato é uma das áreas mais escuras da gigantesca constelação das vanguardas artísticas, entre os anos 1910 e os anos 30, basicamente na Europa do entre-guerras. Os motivos desse escurecimento não são muito estranhos, pois iluminar essas práticas produtivistas, como vem sucedendo, sobretudo, nas últimas duas décadas, significaria colocar de cabeça para baixo praticamente todo o conhecimento que se produziu ao redor da história das vanguardas durante o século passado.
A hipótese produtivista, de alguma maneira, é bem simples: trata-se de passar da fase experimental, de laboratório, especulativa das vanguardas, a literalmente extravasar a estrutura da instituição artística, fazer isso sem abandonar as hipóteses, as ferramentas, os protótipos colocados em funcionamento ou inventados justamente pelas vanguardas nessa fase especulativa, nessa fase de laboratório. Não abandonar, porém extravasar o âmbito da instituição artística, colocando-o a serviço de outra coisa. Que é essa outra coisa? É a produção social, posta a serviço de organizar a cooperação social.
No caso das vanguardas contextualizadas no âmbito geográfico da União Soviética, essa produção social consiste, exatamente, na construção do socialismo, mas não podemos confundir a hipótese do extravasamento das vanguardas com a organização da produção social que se dá no âmbito geopolítico da União Soviética. Por exemplo, talvez de algum modo seja isto o que esteja por detrás do que impulsiona definitivamente a invenção da fotomontagem no dadaísmo político na Alemanha entre os anos 1920 e 30.
De uma maneira mais geral, podemos detectar indícios, experiências, justamente deste extravasamento, repito, de sua fase de laboratório, para além dos limites da instituição artística em direção a uma prática artística que consiste em inventar modos de organizar a produção e a cooperação social em muitos outros lugares.
A ideia, a única ideia, que eu gostaria de submeter a esta conversa, mostrando quatro ou cinco exemplos, é: como podemos deslocar, de uma maneira muito radical, seguindo a síntese teórica que elabora Walter Benjamin nos anos 1930, estas duas figuras centrais na teoria e na prática artística da modernidade, que são o autor e sua obra, para considerá-las como uma prática de arte fora deste peso tão forte que tem a tradição centrada no objeto?
E pensar o título da conversa de hoje, “A arte como invenção e como produção de modos de organização”, como forma de organizar a cooperação. Talvez a colocação desta ideia nos possibilite pensar de que maneira se pode entender o aparente paradoxo ao qual Elena se referiu quando fez minha apresentação: como pode alguém apresentar-se como artista quando em realidade, dentro de sua prática, coloca em primeiro plano tarefas como a docência, o ativismo social, a tradução, a edição de materiais ou uma situação como a de hoje, como se pode considerar uma situação como a que aqui estamos organizando entre nós? Pode-se considerá-la como parte de uma prática artística? Se pensamos justamente a prática da arte como a invenção de modos de organização, de modos de organizar a produção e a cooperação social... Aí temos uma chave.
Não estamos produzindo um objeto, não estamos produzindo uma coisa tangível, estamos produzindo tangíveis e intangíveis. Um tangível que é este dispositivo para poder cooperar, para poder produzir conhecimento cooperativamente. E estamos produzindo um intangível, que é o próprio fato de cooperar produzindo conhecimento, o conhecimento que se produz cooperativamente.
O público pergunta sobre qual seria o papel do artista diante deste novo paradigma.
Qual é o papel do artista, nesse caso, na forma de organização? O artista é alguém que na hora de produzir a cooperação social contribui ou disponibiliza ferramentas que são tradicionalmente específicas de sua prática. Ele disponibiliza aquilo que pertence à bagagem do que tradicionalmente foi característico da história da arte ou da história das vanguardas, por exemplo.
A cooperação social, atualmente, significa exatamente disponibilizar ferramentas justamente para que esta cooperação seja potencializada de maneira autônoma, e não condicionada aos mecanismos de valoração que são característicos do capitalismo. O que o artista faz é disponibilizar ferramentas, muitas destas já compartilhadas com outras práticas.
Comentário do público sobre algum caso específico, não é possível entender o caso explicitado em questão.
Mas não se pode discutir a priori. Há que elucidar as perguntas sobre práticas específicas. É uma tendência muito habitual na teoria estética, na teoria da crítica de arte, fazer uma projeção quase permanente em nível abstrato, eu acho que temos que fazer um trabalho permanente de ida e volta entre a abstração e a concreção de práticas materiais concretas na hora de nos perguntar como se faz esta disponibilização das ferramentas artísticas em composição com outras. Mas não ao nível abstrato. O que, sim, é certo, e que podemos aprender das vanguardas do período ao qual estou me referindo, para que seja eficaz esta disponibilização destas ferramentas artísticas com outras ferramentas, para que esta composição seja eficaz, faz falta que não sejam legíveis a priori como artísticas ou que não estejam pré-codificadas como ferramentas artísticas. O que justamente tem a ver com a condição de sua eficácia tem a ver com que não sejam legíveis como artísticas.
Por exemplo, os pavilhões de propaganda desenhados por El Lissitzky para os governos da União Soviética na década dos anos 1930, entre os anos 1920 e 30, não são legíveis como obras artísticas. Porém, ele dizia que os pavilhões eram a obra mais importante de toda sua trajetória, mas não há nenhuma obra de arte, a obra também não é o pavilhão. A obra pode ser todo o conjunto do dispositivo, o trajeto da prática de cooperação entre sujeitos que provêm de determinadas disciplinas, a inter-relação entre o trabalho autônomo cooperativo de especialistas desta disciplina, a articulação disso com as linhas e as diretrizes políticas que emanam de um governo socialista, a interação disso com um projeto de construção do socialismo numa sociedade delimitada no tempo e no espaço, a inserção destes pavilhões em dispositivos de comunicação mais amplos – como são as exposições universais, por exemplo, a subjetivação do público no interior destes pavilhões. Tudo em seu conjunto é a obra, e aí não há obra de arte, não há nem sequer um autor.
Mas o fato de que El Lissitzky tenha dito que era a obra mais importante de sua vida, creio que de alguma maneira é um indício que temos que levar a sério, esses pavilhões como algo que sintetiza o conjunto de sua prática como desenhista, editor, artista, arquiteto. E que, finalmente, se disponibiliza num dispositivo que não é legível como uma obra de arte e no qual, justamente, sua eficácia como dispositivo de comunicação é melhor quanto menos seja legível como obra de arte. É importante vê-lo em modelos específicos.
Ainda vou fazer uma citação de “O autor como produtor”, que está no caderninho de Gerald Raunig que acabo de traduzir. Benjamin dizia:
A prática da arte, a prática do autor como produtor, nunca será somente o trabalho sobre os produtos, mas também, e ao mesmo tempo, o trabalho nos meios de produção, em outras palavras, seus produtos tem que possuir junto a, e antes que seu caráter de obra, uma função organizadora.
[BENJAMIN, 1936]
Quer dizer que podemos pensar que a prática da arte, segundo Benjamin, tem que começar a ser algo mais, algo além dos produtos, podemos inclusive chegar a dizer que o produto de uma prática, em realidade, é não tanto o objeto, mas sua função organizadora, sua função de invenção de modos de organizar a produção.
Neste momento, Expósito apresenta os três exemplos, os movimentos ACT UP, Gran Fury e El Siluetazo.
A imagem do primeiro exemplo que eu queria trazer para a discussão começa a circular no final dos anos 1980 nas ruas de Nova York. É uma imagem de um triângulo equilátero de cor rosa que repousa num dos seus lados e aponta para cima um de seus vértices, sublinhado abaixo por duas palavras, “silêncio” e “morte”, que estão conectados por um signo de “igual”.
Este signo não era imediatamente legível para todos os transeuntes da cidade de Nova York, mas completamente legível para os membros da comunidade gay e lesbiana da cidade, porque o triângulo equilátero se utilizava para sinalizar os homossexuais nos campos de concentração e de extermínio nazi. Entretanto, o triângulo que se utilizava para marcar os homossexuais nos campos de concentração era um triângulo invertido, que apontava para baixo; este signo, portanto, o que produz é uma reversão, pois o triângulo agora aponta para cima.
O efeito semântico é imediato, um triângulo que aponta para baixo é um signo negativo, e um triângulo que aponta para cima é um signo positivo. A reversão do triângulo que aqui neste desenho se produz responde aos mesmos princípios políticos que puseram em prática os movimentos baseados numa política de identidade, que nos anos 1980, como sabem, tinham como uma de suas intervenções mais chamativas o fato de se apropriarem de sinalizações que habitualmente são estigmatizadoras dos comportamentos que a norma, a heteronorma, considera desviados – veado, puta, negro, sapatona – para apropriá-los como signos de identidade, signos de orgulho, como uma identidade em positivo.
Este triângulo faz exatamente isto, sinaliza os homossexuais na véspera de serem exterminados ao serem capturados pelo dispositivo exterminador. Ao ser revertido, se mostra como um signo positivo, que aponta para cima e não para baixo.
O sublinhado das duas palavras, “silêncio” = “morte”, era legível naquele momento no qual o signo começou a circular pelas ruas de Nova York pelos membros daquela comunidade que estavam começando a ser afetados por uma pandemia, uma doença sobre a qual naquele momento se tinha pouca informação, a AIDS. Silêncio = morte se referia literalmente a que o silêncio em torno da doença era equivalente à morte massiva de grupos inteiros da população.
Este signo, o que estava literalmente chamando era a necessidade de falar, de atuar, de tornar visível o que se estava vivendo como um drama, um trauma, e como uma enfermidade e mortes de massa em círculos reduzidos.
O triângulo equilátero se converteu muito rápido no logotipo principal de um movimento e rapidamente se converteu no Movimento Internacional ACT UP, que num primeiro momento consistia na organização de espaços de apoio mútuo onde as personas afetadas pelo HIV podiam compartilhar sua experiência da doença, e este compartilhamento era a plataforma a partir da qual se projetava literalmente uma política de atuação pública que não somente já permitia que determinado sujeito se representasse publicamente, mas que, além disso, lhes permitia atuar politicamente para neutralizar os efeitos sociais negativos espantosos da pandemia de uma maneira distinta da sua representação como vítimas.
Na realidade, essa duplicidade de uma organização social, que é ao mesmo tempo uma rede de apoio mútuo e se converte numa plataforma de denúncia pública e de auto-organização da denúncia, é a matriz a partir da qual se organizam muitos movimentos característicos do atual ciclo de conflitos, desde os finais dos anos 1980 ao princípio dos 1990 e adiante.
Se pensamos na PAH, a Plataforma dos Afetados pela Hipoteca, na Espanha é exatamente isso, um espaço de apoio mútuo onde pessoas que num primeiro momento vivem de uma maneira angustiada, que vivem se auto vitimizando, numa situação como uma crise social, este espaço de apoio mútuo se converte imediatamente em uma estrutura de organização que é de denúncia. Justamente, as pessoas que se veem afetadas, já não como vítimas, mas como pessoas que sendo afetadas são justamente especialistas capazes de denunciar para fora quais são as condições políticas em que acreditam que se deve enfrentar esta crise social. Também é uma plataforma imediata de organizar uma maneira coletiva de confrontar esta crise.
Digamos que ACT UP é um dos casos principais, um dos primeiros, que justamente se pode pensar como muitos movimentos do atual ciclo de protestos, que constitui uma matriz biopolítica, porque, no caso de ACT UP, o vemos muito claro, no caso da PAH, o que vemos é como uma crise social faz sintoma nos corpos como o lugar onde simultaneamente o poder se exerce e o contrapoder se contrapõe ao exercício de um poder externo.
No caso da AIDS, são bem claras as negligências ou os interesses que são característicos do ciclo capitalista neoliberal, que definitivamente é o que faz com que a epidemia do HIV se estenda e literalmente produza a morte de camadas massivas da população civil. Aí vemos claramente como o poder controla os lugares onde a vida se produz e se reproduz e onde a morte também se exerce. E vemos no caso de ACT UP como atuar a partir dos corpos é literalmente pensar os corpos como um lugar a partir do qual um contrapoder biopolítico também se opõe a um biopoder que se exerce de fora.
No caso da PAH, também podemos entendê-lo perfeitamente, como os outros movimentos do ciclo atual, os corpos interiorizam mediante os sintomas de ansiedade, de depressão, de neurose, aquilo que consideram como um fracasso próprio na hora de responder a exigências de promoção e triunfo social. E justamente o espaço de apoio mútuo que organiza o movimento é o lugar onde os corpos podem pensar que a ansiedade, a depressão, a neurose, inclusive a morte, é um efeito sobre o próprio corpo de algo que é um exercício de um poder externo, portanto é um biopoder. Um poder que afeta literalmente os lugares onde a vida é produzida.
Sempre foi assim, e podemos pensar, neste sentido, que a fábrica tradicionalmente não foi somente um dispositivo de produção material, mas de subjetivação, um lugar onde também se modelou a subjetividade da força de trabalho de uma maneira que a submetia aos interesses do capital.
Pensemos que os sindicatos são tradicionalmente um contrapoder em termos de biopoder, um sindicato é aquele lugar que não somente se articulam as reinvindicações de tipos materiais, melhores salários, melhores condições de vida para os trabalhadores, mas que estas reinvindicações afetam literalmente como os corpos buscam, não somente se organizar, mas também produzir e reproduzir suas condições de vida de outra maneira.
O interessante é que, num sentido tradicional, a fábrica e o sindicato são dois dispositivos contrapostos e diferenciados, nos quais o poder e o contrapoder se exercem como forças contrárias. No caso de ACT UP, o corpo toma literalmente a posição central e é onde o biopoder se exerce e uma biopolítica em termos de contrapoder também se exerce como um poder contrário, nele simultaneamente o poder e o contrapoder tomam forma.
Parece-me que o mais interessante é se pensamos nos movimentos do ciclo atual, nos quais o poder e o contrapoder tomam forma nos mesmos dispositivos, ao contrário da situação colocada na fábrica e no sindicato.
Este é um cartaz realizado por um dos coletivos mais conhecidos de artistas que trabalharam no seio do ACT UP no final dos anos 1980 e princípio dos 1990, que é o grupo Gran Fury. É um dos cartazes caraterísticos que o grupo realizou num tipo de relação semiautônoma com a organização de ACT UP. É interessante ler este cartaz de cima para baixo, uma mensagem que vai acumulando camadas de sentido seguindo o aumento do tamanho da tipografia. A primeira frase que começa o cartaz, “com 42.000 mortes”, nos situa na dimensão espantosa de 42.000 mortes. Se na pandemia da aids já houve 42.000 mortes, pensemos como essa cifra aumenta em eco, pensando também quais são as potenciais mortes pelos afetados pelo HIV e como também estas mortes afetam os companheiros e familiares dos afetados, etc.
A segunda camada de sentido, numa tipografia maior, diz que a arte não é suficiente. Prestem atenção que não diz que a arte não serve mais, ou que há de se abandonar a arte, mas que a arte não é suficiente. Na minha opinião, esta frase entra em diálogo com algumas posturas adotadas por certas tendências de radicalização artística que nos anos 1960 e 1970 fizeram com que muitos coletivos abandonassem a prática da arte para abraçar a prática política, ativista, por exemplo, no caso da América Latina, para abraçar as correntes de luta armada. Então o que o cartaz enuncia é que se a arte não é suficiente, a pergunta é, então, o que faz falta a arte ser, ou, o que deve somar-se à arte para que seja suficiente ou para começar a ter uma função que efetivamente possa diminuir a dimensão das 42.000 mortes que se enuncia na primeira frase?
A resposta nos dá o corpo central do cartaz, que é a parte de maior tipografia: adotar a ação direta coletiva para pôr fim na crise da aids. Ação direta + as ferramentas tradicionais que a arte herda da tradição das vanguardas, uma somatória proposta pelo Gran Fury que propõe-se como metodologia para efetivamente confrontar esta crise.
Habitualmente, o que se faz em qualquer exercício de teoria, de crítica e de historiografia de arte é trabalhar sobre as imagens que a prática artística produz. Mas de acordo com o enunciado que propus para a fala de hoje, o que devemos prestar atenção é a maneira que essas imagens servem para organizar, para produzir, um modo de organização.
Estas são imagens muito características de desobediência civil e de ação direta exercitas pelo ACT UP nos espaços públicos. Não importa exatamente que ação é: poderia ser, por exemplo, a interrupção da abertura de um curso judicial em qualquer corte ou audiência de algum edifício judicial importante da cidade de Nova York. Ou poderia ser a interrupção de entrada em qualquer congresso da indústria farmacêutica em qualquer cidade do mundo. O que importa é que são corpos que interrompem o uso habitual daquilo que na linguagem comum se chama de espaço público, mas que de fato não é um espaço público.
O que denominados tradicionalmente como espaço público são em realidade espaços sob o controle dos interesses da administração, do aparato do Estado e do capital. O espaço público do centro da cidade está perfeitamente regulado por esses interesses da administração e pelos interesses do capital: são escritórios, bancos, etc. O que faz uma ação como essa é interromper, cancelar esse uso, para dar-lhe um uso político distinto. Podemos dizer que o que uma ação como essa faz, não é tanto ocupar um espaço público, mas sim dotar de condição pública a um espaço que em realidade não é. Espaço que começa a ser público não por conta da interrupção que os corpos executam, mas porque interrompem o uso habitual desse espaço. Quando, por exemplo, ocupa-se uma praça em qualquer ação do 15M e a delegada de governo (Cristina) Cifuentes diz que se deve levantar esse acampamento porque o espaço é público e é de todos, na realidade, o que há nisso é uma disputa entre dois tipos de legitimidade, dois tipos de concessão do que é público. O que o 15M faz não é interromper o uso público deste espaço, é converter em público o que em realidade não o é — acampar é dotar de condição pública este espaço.
O que é interessante nessa imagem é ver como o signo de silêncio = morte circula inscrito nos corpos. Se historicamente o triângulo rosa apontando para baixo sinalizava os corpos em vias de desaparição, o triângulo rosa apontando para cima, ao contrário, está sinalizando corpos que estão empoderados, que exercem um contrapoder e reconstroem a condição pública do espaço, para chamar a atenção sobre a opinião pública sobre quais as condições em que se desenvolve a pandemia da aids. Vemos ainda que estes corpos estão entrelaçados, compondo uma figura coletiva. Parece-me importante prestar atenção a esta imagem justamente para poder entender essa ideia de que, se a imagem de ACT UP tem um valor artístico, não é porque podemos analisá-la como um objeto isolado, como um objeto autônomo, mas na medida em que serve para disparar a arte como um modo de organização.
Esta é uma manifestação em que vemos como o signo silêncio = morte se utiliza traduzido em diferentes idiomas. Então na obra há mais de uma matriz, que é declinável, desconstruível, transformável, dependendo de quem dela se aproprie. Isto é bem interessante porque o que é que dota de valor uma obra de arte na tradição da crítica de história? O ser singular, o ser irrepetível: se um quadro que eu pinte vale mais do que o que você pintar, é porque só eu posso fazê-lo. Qual é o valor de uma produção visual quando estamos falando de arte como ativismo artístico ou como a arte como modos de organização? Seu valor justamente é poder ser reapropriável e transformável por outros. Se eu produzo algo que só eu posso pôr em prática, ou só é atribuível a mim, então não tem nenhum valor para os demais. Aqui justamente é seu contrário, tem valor porque é reapropriável, modificável por outros. Até o ponto que podemos dizer, como dizia num texto referido ao coletivo Ne Pas Plier, que escreveu Brian Holmes há uns anos, “seu valor é seu uso”. Na medida em que pode ter um uso, aí está seu valor.
El Siluetazo
Bom, estamos no final do ano de 1983, em Buenos Aires, a última ditadura cívico-militar na Argentina começou em 1976 – nos últimos anos, na Argentina, chamam a ditadura de cívico-militar, como também deveríamos chamar o franquismo cívico-militar na Espanha, pois como lá dizem os movimentos pelos direitos humanos, a ditadura não foi somente militar, foi uma trama entre militares e civis. Como aqui também foi o Franquismo.
Voltando ao assunto, estamos nos últimos meses da ditadura cívico-militar, ano 1983, as mães da Praça de Maio vão organizar uma das que hoje se denominam marchas da resistência, que é uma das numerosas invenções que saíram das cabeças, das mãos e dos corpos das mães da Praça de Maio.
As “Madres” (Madres de la Plaza de Mayo) foi um movimento de invenção de dispositivos de sinalização, de denúncia, de auto-organização, verdadeiramente fabuloso. E uma destas invenções das Madres foi a marcha da resistência, em que consistia a marcha da resistência? Que ainda hoje, ocasionalmente, ocorre. Consistia em tomar a Praça de Maio durante uma tarde, organizar um ato de sinalização, de comunicação política, aguentar toda a noite, e se conseguisse aguentar toda a noite, na manhã seguinte, se marcharia através da Avenida de Maio, seguindo o eixo que leva até o Congresso.
Esta é a imagem geral que oferecia esta marcha da resistência, uma imagem bem estranha, que antes nunca se havia visto. Uma multidão pintando silhuetas e disseminando-as pelos arredores da praça.
Um livro, publicado há uns quatro ou cinco anos, editado por Ana Longoni e Gustavo Bruzzone, com o título de Siluetazo, acabou por nos revelar o que tinha sido uma certa incógnita ao redor de como surge a ferramenta de sinalização dos corpos dos desaparecidos, que foi uma das duas principais matrizes de sinalização dos desparecidos, impulsionadas pelo movimento dos direitos humanos na Argentina. Por um lado, as silhuetas, por outro lado, as fotos dos desaparecidos, que são trazidas nos corpos (ou em alça, em ampliações) dos familiares, filhos, mães e avós pela ditadura cívico-militar.
O livro de Ana Longoni e de Bruzzone nos revela que o Siluetazo foi um movimento idealizado por três artistas, Guillermo Kexel, a quem pertence esta fotografia que estou mostrando, Julio Flores, ambos vivos, e Rodolfo Aguerreberry, falecido.
Eles três tinham pensado, ainda durante a ditadura, em produzir uma obra que servisse para sinalizar o que naquele momento já se manejada como cifra dos presos desaparecidos pela ditadura, a terrível cifra de 30.000 pessoas. Originalmente, iriam apresentar esta proposta/projeto para um prêmio de arte, que depois se cancelou. Não sabiam muito bem o que fazer com este projeto. Porque, de todas as maneiras, não havia como executá-lo, pois tinha uma série de problema práticos, por exemplo, não havia parede suficiente nos museus de toda a Argentina para colocar 30.000 silhuetas em tamanho real. E, por outro lado, não era fácil que três pessoas sozinhas pudessem produzir 30.000 silhuetas em um curto prazo.
Decidem levar a ideia para as Madres da Praça de Maio, que justamente estão preparando a terceira marcha da resistência. As Madres imediatamente adotam o projeto e lhe introduzem uma série de modificações.
O projeto se executa nesta marcha até que finalmente vai-se multiplicando sem saber que originalmente era uma proposta de três artistas. E se adota, como digo, utilizando a linguagem de historiadora de arte Ana Longoni, como uma das duas matrizes principais de sinalização dos desaparecidos até a data de hoje.
Há várias questões para se constatar no Siluetazo, a primeira é que justamente no trânsito de ser um projeto de três artistas a ser adotado pelas Madres e multiplicar sua execução na praça, vemos justamente o momento de extravasamento de um projeto que é uma proposta pensada nos limites dos parâmetros da instituição artística para ser uma proposta que extrapola estes parâmetros e converte-se literalmente numa prática coletiva.
Aí vemos também o fato de que, como vimos antes no caso de ACT UP, e volto a citar a ideia de Brian Holmes de acordo com o qual o valor de uma produção deste tipo é o uso que se pode dar. Aqui vemos isto claramente. O valor das silhuetas é justamente seu uso multiplicável, a propriedade que tem de ser suscetível, apropriada e multiplicada em sua execução como uma imagem de sinalização.
Na conversa que fizemos antes de ontem, alguém se opôs ao Siluetazo, o levantou desde o ponto de vista estético, que são imagens que não têm muito valor desde o ponto de vista pictórico. Chamo a atenção para o fato de que há dois motivos principais que constituem o êxito da multiplicação do Siluetazo como prática de sinalização, e estas duas características são as seguintes:
A primeira, a facilidade em sua execução, o Siluetazo pode se multiplicar e ainda hoje se multiplica como prática de sinalização pela extrema simplicidade de sua execução. Se fosse uma imagem mais complexa de executar, não se poderia multiplicar. O fato de ser extremamente simples, o que para um crítico de arte significaria pobreza como imagem icônica, em termos políticos é justamente este o valor de sua multiplicação, porque pode ser apropriada.
E outra coisa bem importante, falando nesses termos, o Siluetazo desloca o lugar de sua realização para fazê-lo simultaneamente no lugar de sua exibição, dito de um modo muito bruto, desloca o estúdio e o sobrepõe ao lugar onde se exibe. O fato de que a silhueta se faça deste modo, neste lugar, significa que é uma das chaves de sua multiplicação, constitui uma pedagogia de si no espaço público, as pessoas que transitam pelo espaço veem como se executa uma imagem que é extremamente simples de se realizar e somam-se à produção, assim é a produção cooperativa das silhuetas.
Este é um dos casos, que antes mencionei, no qual a eficácia da prática é inversamente proporcional a seu reconhecimento como artística. Se eu pinto uma silhueta incrível no estúdio e a tiro para a rua, como um mural, você diz: “É incrível!”. Mas você não se soma à execução. Se eu e você, que somos artistas, pintamos um mural diretamente na praça e o fazemos com muito virtuosismo, também somos reconhecidos pelo virtuosismo de sua execução, mas é raro que alguém se some para multiplicar esta imagem. Na medida em que a imagem se executa por qualquer um no espaço público, não se reconhece como artística, mas literalmente como uma sinalização, e vê-se claramente, no momento, como é simples sua execução, que isto permite que tenham sujeitos que se somem e, além disso, que a adaptem às suas condições e aos seus limites para reproduzi-las.
Esta é uma imagem de Eduardo Gil, a polícia desorientada justo olhando as silhuetas, não sabem o que fazer. Além do mais, aqui, os policiais não sabem o que é, não sabem o que fazer com isto. Porque nem sequer é uma bandeira que diga um lema político.
Há várias questões para assinalar no Siluetazo, a primeira: transforma completamente o que entendemos por comunicação política. Habitualmente, a comunicação política, em seu sentido mais tradicional de esquerda, utiliza um canal para diretamente/literalmente canalizar uma mensagem. Aqui não há uma mensagem canalizada, não há mensagem literal, algo estão dizendo claramente as silhuetas, algo tem a ver com os desparecidos, mas não é um lema que denuncia algo concreto, digamos que comunica, por um lado, o fato de que a ditadura está exercendo uma prática de desaparecimento, mas, além da comunicação, há algo que produz uma comoção em quem participa das silhuetas e em quem as encontra na rua.
A técnica de execução de silhuetas mais interessante é aquela em que alguém põe o corpo sobre o papel no chão, se siluetea e depois coloca a sua silhueta na parede. Porque aí se produz algo, como apontaram alguns autores, como um exercício de transmissão.
Vejam que o que a prática de desaparecimento procura é literalmente fazer desaparecer um corpo, apagar a identidade de algo, que um sujeito desapareça, desfazê-lo ao máximo. O que faz a silhueta é, através do corpo de alguém que está presente, voltar a dar presença a um corpo que a ditadura fez desaparecer. Aí há algo mais que a mera comunicação de um lema, de uma mensagem. Há algo que, de algum modo, produz uma comunicação entre os sujeitos que não estão e os sujeitos que estão. O corpo daquele que está se dispõe a presentificar alguém através de uma silhueta, que é uma figura genérica; mesmo que em algumas silhuetas se possam incluir os dados de pessoas concretas que foram desaparecidas. Há um elemento interessante.
E outro elemento interessante é que, habitualmente, inclusive a partir dos parâmetros que não são os tradicionais, quando falamos do Siluetazo, tendemos a pensar como a silhueta opera, que efeitos operam na silhueta, e para mim esta imagem que compôs Kexel parece muito interessante, porque aqui vemos que o Siluetazo, para além dos efeitos que poderiam ser produzidos disto como figura, é, na medida que estou propondo hoje, um modo de organização. O Siluetazo é uma forma de organizar o protesto no espaço público. O enquadramento da praça diante do Siluetazo não é igual ao que seria sem ele. O Siluetazo obriga a organizar o protesto de uma determinada maneira, é um modo de organização.
Quando fiz um vídeo, perguntei a Kexel qual tinha sido a metodologia concreta que tinham utilizado para implantar o Siluetazo num primeiro momento na praça e como tinha sido literalmente o processo de multiplicação da execução das silhuetas. É bem interessante, porque comentavam que o que fizeram foi chegar à praça já com as silhuetas produzidas, segundo, chegaram com os rolos de papel que cortariam para produzir as silhuetas e demarcaram o espaço como pontos, no interior dos quais se produziriam as silhuetas. E algumas pessoas que já estavam avisadas, que já haviam colocado as silhuetas, se dispuseram a produzir mais silhuetas, cortando o papel e pondo seus corpos no chão. Imediatamente, começou a se somar gente. Daí vemos que as silhuetas são um modo de organização. Esta prática artística é um modo de organização. E as silhuetas são o resultado de um modo de organizar o protesto.
Comentário do público sobre o Siluetazo continuar sendo uma representação.
O Siluetazo não é uma representação. Para avaliar estas práticas, temos que sair do paradigma da representação. O Siluetazo é uma presença e é um modo de organização, que é diferente de uma representação.
Que quer uma ditadura? Destruir o vínculo social. A ascensão dos fascismos e dos nacionais-socialistas nos anos 1930 é exatamente um instrumento da burguesia europeia para paralisar o desenvolvimento extremo das formas de organização do movimento operário. Bom, isto sabemos, o que procura uma ditadura é romper o círculo social, fragmentar, dividir, individualizar e submeter as formas de cooperação social a uma estrutura piramidal, de mando vertical.
O que faz o Siluetazo em plena ditadura? Através de uma ferramenta, de uma técnica muito simples, restitui o vínculo social, porque, para produzir a silhueta, tem que ter comunicação entre corpos, tem que ter comunicação verbal, tem que ter comunicação política, tem que ter comunicação física, tem que ter comunicação simbólica.
O Siluetazo é uma técnica de restituição do vínculo social, o que não é uma representação, é uma produção em ato do vínculo social. É uma forma de organizar a cooperação, então não a representa, é produção de cooperação. E a silhueta não representa os desaparecidos, não é tanto uma representação dos desaparecidos, em parte é uma representação, mas torna-se mais complexa, porque o que tem aí não é uma silhueta de um desaparecido, é uma silhueta de um sujeito que existe ou uma silhueta de um sujeito que, se não existe, se inventa. Não é propriamente a silhueta de alguém que foi desaparecido, estabelece uma comunicação entre quem não está e os que estamos presentes. Então, para interpretar estas práticas, tem que sair deste paradigma. Não é uma representação da multidão. Não é uma representação da cooperação, é uma “realização em ato”, literalmente a cooperação. É uma produção de multidão em ação, mas não é uma representação.
Eu estou pondo a ênfase não tanto no objeto que vem ao final porque o objeto é um elemento que desencadeia um processo que é só uma parte de um tipo de engrenagem, de um tipo de maquinário. No Siluetazo, o que importa não é tanto o que representa, que função tem ou o que mostram as silhuetas, mas o fato de ser um dispositivo que tem outra complexidade.
É certo que até tem um elemento de representação, pode ser, mas isso é um elemento a mais, um componente a mais de um mecanismo mais complexo. O quê representa a colaboração que se dá entre você e eu na hora de produzir uma silhueta? Aí não há representação, há uma técnica de produção de um vínculo e o Siluetazo é o resultado disto. A chave aí é a reconstrução de vínculo que a ditadura quer romper. Porque, primeiro, a ditadura quer que eu desapareça, quer apagar o sinal da minha identidade; segundo, quer que o meu pai não fale que eu desapareci, que a família não o comente, que se saiba mas não se diga. E daí o que faz o Siluetazo? Restitui o vínculo, produz uma visibilidade que é contrária à invisibilização que a ditadura quer impor. Entretanto, essa visibilidade é o resultado de uma técnica, de uma técnica que organiza a restituição de um vínculo, que é um vínculo de comunicação, de solidariedade, que é um vínculo afetivo, simbólico — essa é a chave, creio.
Se há uma dimensão de representação, é uma parte a mais num maquinário mais complexo. Porque a proposta é sair de nossa fixação com o que opera, com o que faz e significa o objeto, e sobretudo pensar que tanto o objeto quanto sua dimensão de representação são como um componente a mais numa máquina que é mais complexa.
É definitivamente à técnica que temos de ir. O que deduz-se de dois textos históricos de Benjamin dos anos 1930 é que a chave é a técnica. Tem-se que esclarecer a técnica.
Pergunta do público sobre se o Siluetazo pode ser pensado por meio de uma dimensão teatral.
Sim e não. Sim, se estamos falando de uma dimensão teatral se sabemos ler um trânsito histórico no qual o teatro desborda os limites da representação para passar a orquestrar uma encenação onde não há uma representação propriamente, mas uma ação.
Parece-me que os idealizadores do Siluetazo estavam num primeiro momento fortemente influenciados pela Pedagogia do oprimido de Paulo Freire e supostamente pelas formas de teatro que estão vinculadas ao Teatro do Oprimido, no qual justamente não há o teatro como representação, nem uma dissolução do teatro na vida. É a introdução de um elemento de estranhamento na vida através de uma encenação, de um exercício corporal. Isso é o Siluetazo: não é nem uma representação teatral, nem uma dissolução de algo na vida de maneira que não se diferencia da “vida cotidiana”. É o corpo orquestrando uma encenação que introduz no cotidiano um estranhamento. É a técnica de estranhamento brechtiano no interior do cotidiano. Isso é o Siluetazo. Não é uma diferença entre quem olha e a cena, é um solapamento entre quem assiste e a cena. É uma veladura.
O Siluetazo literalmente introduz um estranhamento: a prova são as fotos dos guardas que não sabem o que fazer. Uma manifestação responde à lógica da manifestação e da repressão; o Siluetazo num primeiro momento desestrutura este cotidiano da manifestação. A polícia não sabe o que fazer porque introduziu-se um estranhamento. Aí vamos de novo a algo a que me referia, um desbordamento dos limites das instituições estéticas da modernidade, mas levando consigo as ferramentas que foram características de uma fase experimental ou de laboratório da vanguarda. É levar à cena da “vida cotidiana” as técnicas de estranhamento brechtiano, apagando a cena, apagando o limite entre o público e a cena. Produzindo um estranhamento no cotidiano.
Pergunta do público sobre os objetos produzidos pela Bauhaus.
O princípio vanguardista de dissolver a arte na vida nessas práticas que têm a ver com uma projeção racional ou técnica da prática, seja no Construtivismo ou na Bauhaus, por aí, que se traduzem em levar consigo as ferramentas de organização racional da produção estética para, desbordando o limite da instituição artística, passar a pensar a organização racional da vida, discorrem historicamente, na minha opinião, em dois eixos paralelos de intenções.
O eixo do desenho, dito de um modo bem superficial, introduzido sobretudo pela reconfiguração da ideologia do desenho que estabelece o argentino Tomas Maldonado na Europa, que basicamente consiste em vender este princípio à reorganização neocapitalista europeia depois da Segunda Guerra Mundial. Nesse eixo, o princípio vanguardista de organizar tecnicamente a vida a partir das ferramentas das vanguardas consiste literalmente em colocar a organização técnica da vida ao serviço de desenvolvimento do capital.
E tem o eixo de pensar a verificação dessas ferramentas experimentais no interior dos movimentos sociais.
Estas são duas tensões que historicamente se podem analisar e que chegam até o presente. Tem-se, por uma parte, a organização técnica da vida nas mãos do capital e, por outra parte, a organização autônoma da vida nas mãos dos movimentos sociais. Em ambos os casos, pode-se detectar como estes dois princípios fazem uso das ferramentas experimentais da vanguarda.
Para mim, a fase histórica atual consiste literalmente em reverter o que historicamente fez a ideologia do desenho. Devolver de novo aos princípios da autonomia social o que foi historicamente a colocação dessas ferramentas à valorização capitalista.
Pergunta do público sobre Tucuman Arde e a reclamação sobre o direito autoral das imagens que circulam sobre isso.
É um bom exemplo. Neste caso, vemos que não se pode ser tão rígido na hora de pensar o dentro e o fora na instituição. Poderia parecer que eu preferisse postular aqui o fato de que essas práticas não fossem institucionalizadas, quando na realidade, no caso de Tucuman Arde, se demonstra que a multiplicação de uma prática passa também por disputar no interior das instituições artísticas a forma como se relatam ou se historizam essas práticas. Se podemos falar disto, é porque precisamente Tucuman Arde circulou na instituição artística, o que facilitou justamente sua multiplicação, seu conhecimento, e isso abre um campo para poder disputar essa herança, como a atualizamos ou a reativamos agora. Porque Tucuman Arde oscilou justamente entre as recuperações historiográficas mais banais, mas também as reativações mais interessantes, isso somente porque justamente circulou nos âmbitos museográficos.
Mais do que ter medo dessas questões, há de se pensar essas dinâmicas, há de se disputá-las. A figura do Che para que serve, por exemplo? Para reativar revoluções ou para vender camisetas? Para as duas coisas, uma coisa não invalida a outra. A chave sempre é como essas operações “no interior da instituição” se relacionam com o fora. Cada caso é distinto. São territórios, dinâmicas em disputa.
Uma das caraterísticas dos movimentos do ciclo atual de conflitos, desde o zapatismo em diante, ou melhor, desde o ciclo de revoltas democráticas de 2011 em diante, desde Tahrir até Occupy, passando pelo 15M, pelos movimentos estudantis no Chile, na Colômbia, etc., é sua potência expressiva. A chave dessa expressividade é o desclassamento, ou seja, quando os filhos da classe média ampliada que tiveram acesso e puderam aprender ferramentas de produção simbólicas, expressivas, potentes e complexas, decidiram que não iriam mais pô-las a serviço de nenhuma empresa, mas iriam usá-las para outra coisa. Isso é o que explica a potência expressiva do 2011. A proliferação de cartazes, vídeos, lemas, slogans, formas inventivas de ocupar a praça, de desestruturar a confrontação com a polícia, tudo isso que depois os teóricos e críticos de arte reduzem a vamos “analisar o cartazes de Occupy”. Na realidade, o importante não é o cartaz, mas justamente a proliferação de formas expressivas e a chave aí é que alguém, em lugar de vender o que sabe à empresa, passa a pôr esse conhecimento a serviço dos movimentos sociais.
E isso ocorre porque o capital nas últimas décadas rompeu uma multidão de pactos habituais com a classe média e porque cada vez mais camadas da população mundial enxergam a verdadeira cara do neoliberalismo. E por outra série de motivos, do mais banal aos mais complexos.
Pergunta do público sobre o projeto Las Agencias.
Las agencias são fruto da confluência de um duplo processo, no qual, por um lado, pessoas, setores e grupos de trabalho que vêm tradicionalmente de dentro do trabalho na instituição artística e têm interesse em ampliar as ferramentas clássicas da crítica institucional começam a pensar a abertura do trabalho no interior dessas instituições articuladas com os movimentos sociais. Ou seja, começam a pensar desde a crítica institucional o desbordamento para fora da instituição.
E, por outro lado, há uma confluência disso com pessoas, sujeitos e coletivos que, desde o trabalho tradicional dos movimentos sociais começam a pensar a articulação, o agenciamento, com instituições de uma maneira que os levam a pensar de outra forma o conceito de autonomia dos movimentos.
Eu creio que haja setores do movimento que pretendem realizar um agenciamento, uma articulação, uma experimentação, uma simbiose, com áreas também experimentais da instituição, e setores da instituição que querem pensar a articulação com os movimentos sociais. Esses dois eixos confluem num contexto muito singular que é a eclosão do movimento global, ou movimento contra a globalização neoliberal, que estava em Seattle, que tem seu Seattle europeu em Praga, no ano 2000. E que também se encontra em 2001 em Barcelona, quando se convoca a reunião do Banco Mundial e do FMI. Esta circunstância se dá na medida em que o Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, o MACBA, era uma instituição que particularmente já vinha nesse trajeto via Fundação Tàpies, que já estava pensando em como experimentar com agentes sociais externos à instituição.
E Barcelona era uma cidade que tinha tido uma participação muito marcada no Seattle europeu, que foi Praga no ano 2000. E havia já de fato uma convocatória para fazer um primeiro experimento que foram as jornadas “Da ação direta como uma das Belas Artes”, organizadas originariamente pelo coletivo La fiambrera. Então, já existia a ideia de fazer esse primeiro experimento, um primeiro protótipo de articulação entre a área de abertura dos eixos dos movimentos em direção à instituição cultural, um em relação ao outro, reciprocamente. Daí, surge a possibilidade de fazer um projeto de trabalho que funciona na intersecção entre a instituição e os movimentos. Que não fosse nem os movimentos aproveitando-se da instituição tirando-lhes dinheiro, nem a instituição cooptando os movimentos para renovar ou para reproduzir seu programa cultural. Las Agencias saiu-se relativamente bem, mais ou menos bem…
Pergunta sobre o impacto e as transformações ocasionadas por Las Agencias.
Las agencias nunca foi exposta; são mais desconhecidas que qualquer outra coisa, não estão catalogadas, não há nada. Poderíamos analisar os seus variados níveis de impacto — a nível institucional teríamos que perguntar aos museus, à instituição artística, aos curadores ou gestores, sobre o que eles pensam. Por que não houve uma transformação mais radical da instituição artística na Espanha? Posso pensar que pelo ensino do sistema da arte, mas não é bobagem, é uma pergunta pertinente. Por que há uma maré pela saúde pública, pela educação pública, pelos afetados da hipoteca, e não há uma maré pelas condições da cultura? Porque a cultura acaba tropeçando em si mesma e não gera nenhum dispositivo que permita sua composição com outros. Essas são modificações que efetivamente não foram produzidas num sentido visível. Mas bem, há interpelações para fazer diretamente aos agentes culturais.
Mas em outro sentido menos evidente, não por Las agencias evidentemente, há perguntas que há de se fazer sobre por que os movimentos contra a crise na Espanha, particularmente sendo o impacto da crise o mesmo que na Grécia, ou Portugal ou Itália ou Irlanda, por que aqui particularmente as configurações contra a crise são de uma expressiva complexidade, de uma riqueza política, de uma complexidade também no agenciamento entre instituição e movimentos, de uma complexidade também na hora de colocar-se como estrutura de movimentos que simultaneamente são destituintes do regime, instituintes de uma institucionalidade própria do movimento, e constituinte no que claramente o movimento contra o que a crise está propondo, que é o rebocamento da constituição de 78, e gerar um processo constitucional novo, essa riqueza que é simultaneamente expressiva, política, etc.
O movimento da Espanha, não pode ser por casualidade, não se está dando uma resposta à crise com tanta complexidade igualmente na Grécia, na Itália, ou em Portugal. Digo que não é por Las agencias, claro, mas algo vem passando aqui nos 15, 20, últimos anos que faz que a complexidade contra a crise seja mais esperançosa, mais contundente, mais rica, mais proteica em muito níveis do que está sendo em outros lugares.
Por exemplo, com que relativa facilidade na Espanha agora se aceita em termos de sentido comum na opinião pública o movimento da desobediência civil, ou a ação direta? Qual são os eixos que restituem a política do movimento social em plena penúria da hegemonia neoliberal na Espanha, final dos oitenta, princípio dos noventa? Por uma parte é a ocupação, por outra parte é a insubmissão antimilitarista, e conectando ambas, o feminino autônomo. Quais são as ferramentas pelas quais se exercem esses eixos de recomposição de movimentos? A desobediência civil e a ação direta. Então, não é tão estranho se levamos aqui 25 anos de trabalho político em torno à desobediência civil e à ação direta, não é tão estranho que haja um sentido comum que aceite com relativa naturalidade os escraches da PAH, ou as ocupações pela moradia, ou a ocupação do espaço público pelos acampamentos. Porque, além do evidente, há algo que vai se conformando por baixo em termos de sentido comum; há algo neste sentido comum da sensibilidade compartilhada que resulta que aqui essas coisas passem assim.
Outra vez, não digo que isso tem a ver com Las agencias ou com o 15M, mas que há uma experimentação que se compõe com outras experimentações que dá lugar a coisas que agora mesmo não se pode associar com literalidade porém que faz com que as coisas aconteçam aqui com um grau de complexidade diferente.
O público comenta criticamente o papel dos museus em relação a seus discursos.
É que as instituições culturais, em algum ponto, são irrecuperáveis…
O conceito de significante vazio ou aberto (Chantal Mouffe e Laclau) ajuda a pensar esse processo. Explico com minhas palavras. Os movimentos do novo ciclo se desenvolvem não tanto por somatória de identidades que se mantêm fixas mas por um tipo de articulação que faz com que, na composição, essas identidades se modifiquem simultaneamente. É aquilo que alguém lança e outro sujeito pode adotar justamente significando-o.
É um significante aberto o conceito de “democracia” lançado na Praça Tahrir, no Egito, reapropriado pelo 15M e pelo movimento Occupy. O conceito de “democracia” não quer dizer a mesma coisa nos três casos, mas também não é um significante tão fechado para que se mostre solidariedade somente pelo que os egípcios postulam. Eles lançam algo de que você se reapropria, resignifica, catapulta, ou seja, se resignifica o que se produz. É justamente um encadeamento, uma sequência encadeada num processo de movimento.
Qual é a chave para que se desencadeie um processo de movimento complexo a partir dos protestos dos estudantes no Chile? Quando os estudantes no Chile dizem “gratuidade”, estão dizendo algo que eu, que sou caminhoneiro, que sou motorista de ônibus, ou que sou funcionário da saúde pública, possa abrir-me ao movimento de estudantes de um modo diferente da mera solidariedade. Quando dizem “gratuidade”, abre-me a porta para que eu pense algo diferente de “me solidarizo com os estudantes que têm um problema, o problema das mensalidades ou o problema do endividamento para poder realizar estudos superiores”. Abre-me a porta para que eu possa pensar: o que esses tipos estão dizendo é a chave para pensar o processo de sujeição social do neoliberalismo no Chile através do endividamento pelo encarecimento de algo que deve ser o sentido comum da sociedade: a saúde, a educação, o transporte público. Então “gratuidade” dita pelos estudantes é o mesmo, e ao mesmo tempo diferente, da “gratuidade” dita por mim que sou caminheiro, da “gratuidade” dita por mim que sou funcionário da saúde pública. Aí temos uma imagem clara. O significante aberto é a chave que permite a articulação, o desencadeamento de um movimento por articulação. Democracia é isso.
Uma companheira do Podemos explicou isso muito bem em Madrid. Ela disse que a chave do êxito colocado pelas enfermeiras em Madrid desde a primeira ocupação que elas fizeram num ambulatório deixa bem claro que não estavam ocupando por um problema singular delas. Evidentemente que estavam reivindicando que não as despedissem, mas que a origem daquela demissão como enfermeiras era uma política de cortes que estava desabastecendo a saúde pública e que estava definitivamente dirigida a sua privatização, o que por sua vez afetava a saúde da sociedade como um todo.
O que elas estão fazendo é lançar um significante aberto de maneira que possamos, sem ter um trabalho na saúde publica, solidarizar-nos pela enfermeira mas também lutar pela saúde pública porque isso nos afeta a partir do nosso lugar. Por que luto pela saúde pública? Por que tenho dois filhos que são afetados pela privatização da saúde. Eu luto pelos meus filhos e articuladamente luto pelo posto de trabalho da enfermeira que luta por seu posto de trabalho e articuladamente para que meus filhos tenham saúde pública.
Isso o sistema da cultura não sabe fazer, se manifesta pelos impostos, para que se lhes deem mais lugares para se fazer arte, por coisas que não são significantes abertos, não permitem a articulação com outros, não permitem o encadeamento, e como não permitem o encadeamento, nos veem como sujeitos que reclamamos o nosso. Quando nos manifestamos, quando temos um cartaz bem grande que diz: “Que tem para mim?” Ao invés de como os demais se manifestam com um cartaz bem grande com: “Que tem para todos? Que tem para o comum?”
Público pergunta sobre a greve dos controladores aéreos.
Há uma diferença entre os controladores aéreos dizendo na semana santa “queremos mais salário” e os caras que carregam as malas, que dizem “não posso mais porque estou arrebentado”. Quando reclamo por minha mala, me queixando que estão atrasando para entregá-la e vejo quando sai uma pessoa com olheiras bem grandes e três dias sem dormir, que trabalha por um salário de 300 euros para levar as malas de 25.000 turistas, acabo dando-me conta que o que está me afetando nestes serviços tem a ver com a degradação das condições de trabalho. Daí há a possibilidade de compor, mas se a questão é colocada como “Que tem para mim?”, ninguém vai te fazer caso.
O que houve no ciclo atual é uma composição de experimentações. Às vezes é interessante pensar a relação entre os elementos da ordem de coisas que estamos discutindo não tanto por sua relação literal, mas por sua reverberação. Estamos falando de coisas que não têm uma tradução evolutiva, linear ou consecutiva — tal artista influi a outro ou tal movimento influi outro — estamos falando de experimentações que são complexas, que são truncadas, que parecem que não têm saída, que não têm derivações, que sucedem uma aqui e outra ali. É mais interessante pô-las juntas para pensarmos a ressonância entre umas e outras.
O público pergunta sobre a repercussão de Las Agencias para os museus.
Podemos pensar que repercussão tem Las agencias nos museus, mas também podemos perguntar-nos que relação há entre Las agencias, os escraches da PAH, a ocupação das praças no 15M, o triunfo da maré da saúde em Madrid e os experimentos eleitorais que surgem dos movimentos para fazer uma tomada do poder político? Se pusermos estes elementos juntos e vermos suas conexões, o que daí aparece é mais interessante. Pensar no que umas experiências reverberam em outras, e as conexões que não são literais nem consecutivas, nem claramente evolutivas mas têm ali algo que ressoa, nos permitindo compor um diagrama de situação que é mais complexo, que é mais rico. Porque definitivamente a influência ou não que uma prática tem no museu é de algum modo secundariamente importante. Na realidade, o que isso importa?
O público justifica da importância de pensar o museu como um espaço aberto.
De qualquer forma há de se pensar na redundância, de museu a museu; para talvez pensar desde outro lugar, desde fora, e dispor diagramaticamente todos estes fenômenos para voltar a pensar o museu. Tanto o significante aberto através do triunfo das marés quanto o conceito de democracia no século de XXI nos fazem entender como se reformulou o museu. O problema com o sistema de arte é que é tão redundante, sempre se pensa desde o interior de si mesmo, inclusive a crítica institucional é sempre tão interna ao próprio sistema que redunda, e é por isso que é facilmente cooptável, porque é muito redundante, muito auto-referencial, é melhor pensar as cosas a partir de elementos externos.
Porque, se em realidade alguém pensa no conceito de “democracia” no século XXI, é remetido ao uso deste pelos zapatistas em 1994. O conceito de democracia é um dos elementos de sentido comum do ciclo de conflitos desde os anos noventa até agora. Quando um enxerga as coisas através de outras, pensa em como atuar dentro mas articulando desde fora.
O zapatismo executou as melhores práticas de desvio dos últimos 30 anos; quando na teoria ou na história da arte nos ensinam o desvio situacionista e tal, nem pensem nisso, pensem nos zapatistas, pois eles são um maquinário de desvio, de símbolos e representações de conflito.
O “passamontanhas” é uma recuperação de um signo de uma fase anterior do movimento, que é a luta armada. Que ele significa na tradição da luta armada na América Latina? Ocultamento, clandestinidade e ameaça. E o que o “passamontanhas” significa no zapatismo? Abertura e identidade. Os zapatistas dizem: para que nos olhassem, tapamos a cara, éramos os que fazíamos a comida, os que limpávamos a casa e os sapatos, e não nos olhavam a cara. Para que nos olhassem, tivemos que pô-lo. Então, não é um ocultamento, é um desvelamento.
Quando o governo mexicano quis revelar a identidade de Marcos pensando em fazer merda, convocar uma conferência de imprensa, fazer a publicitação mundial da identidade do subcomandante Marcos, ele se adiantou publicamente e disse “não, eu mesmo vou fazê-lo”, e fez aquele discurso tão bonito, que dizia “Marcos é uma monja da liberação da América Latina, é uma mulher violentada no metrô de Paris, Marcos é um homossexual reprimido em Londres, Marcos é, Marcos é, Marcos é…” Então não é um ocultamento, mas uma visibilizacão. Não é a conformação de uma identidade fechada mas a abertura à composição com a identidade de outros. Que é o que tem aí? A apropriação de um signo que reivindica a memória de uma identidade política mas abrindo-a. Esses são exercícios chaves de desvios no zapatismo.
Por isso é importante a discussão da arte como produção de modos de organização. Com esses exemplos, nos damos conta de que não é uma digressão ociosa. Justamente trata-se de produzir modos de organização que sejam multiplicáveis, articuláveis, apropriáveis por outros.
Se o que está sendo colocado em funcionamento é uma técnica de manifestação ou uma hipótese política que é majoritariamente minoritária, não vale, não serve, por muito em que se empenhe em ter razão. A Chave da ação na qual 20 pessoas invadem um supermercado é que se outras 100, 200, 500, 1000 pessoas quiserem fazê-lo, também podem. Isso é o que dá medo, está se produzindo uma intervenção que é um gesto expressivo, que como técnica é um modo de organização. Essa tática é a sua chave e seu perigo porque essa ação é multiplicável, pode ser desdobrada e articulada com outros. Porque faz com que eu possa me solidarizar em termos de articulação política com essa intervenção feita por outros.
Mas se outras manifestações não o são, não importa discutir a legitimidade ou não da violência; se não multiplica, se é minoritária, se nos faz projetar uma discussão que não nos convém, se efetivamente faz com que respondamos a uma armadilha porque recoloca o modelo poder x contrapoder nos termos que o regime quer, se não é apropriável por outros, se dispersa ao invés de concentrar, daí não sei o que estamos discutindo, não é uma questão de dar ou não razão ao regime com respeito ao que eles querem que façamos. É uma questão de discutir internamente quais são as táticas e as técnicas que nos fazem mais fortes, que nos fazem mais comuns e que são mais comunicáveis.
1 A palestra original pode a ser assistida em
https://www.youtube.com/watch?v=hDMGikv2BYU
2 Usa a expressão tomando el rábano por las hojas.
Este texto foi transcrito e traduzido por Milla Jung com a permissão do autor como encarte para a tese Arte Ocupação, práticas artísticas e a invenção de modos de organização.
Sobre o Investigador Militante
Coletivo Situaciones
1
E finalmente aprendemos que o poder realmente não é o lugar político por excelência. Como dizia Spinoza, o poder é o lugar da tristeza e da impotência mais absoluta. Como chamaremos este saber sobre a emancipação que já não concebe que a mudança passe pela detenção do aparato do Estado, do poder central, mas pela destituição de todo centro?
Na Argentina, ressurgiu a luta popular nos últimos anos. Os piquetes e a insurreição de dezembro de 2001 aceleraram o ritmo da radicalização. O compromisso e a pergunta pelas formas concretas de intervenção se tornaram novamente cruciais. Esta contraofensiva trabalha de maneira múltipla e enfrenta não só os inimigos visíveis mas também quem pretende formatar as experiências de contrapoder para encapsulá-las em esquemas preestabelecidos.
As lutas pela dignidade e pela justiça não se esgotaram: o mundo todo começa a ser questionado e reinventado novamente. É esta ativação da luta — verdadeira contraofensiva — o que encoraja a produção e a difusão das hipóteses do contrapoder.
Segundo James Scott, o ponto de partida da radicalidade é a resistência física, prática, social. Toda relação de poder, de subordinação, produz lugares de encontro entre dominadores e dominados. Nestes espaços de encontro, os dominados exibem um discurso público que consiste em dizer aquilo que os poderosos querem ouvir, reforçando a aparência de sua própria subordinação, enquanto que — silenciosamente — se produz, num espaço invisível ao poder, um mundo de saberes clandestinos que pertencem à experiência da micro-resistência, da insubordinação.
Isso ocorre permanentemente, salvo em épocas de rebelião, quando o mundo dos oprimidos sai à luz pública, surpreendendo-se a si mesmos e a estranhos.
Assim, o universo dos dominados existe dividido: como um servilismo ativo e uma subordinação voluntária, mas também como uma silenciosa linguagem que faz circular um conjunto de piadas, rituais e saberes que conformam os códigos da resistência.
Então, é esta anterioridade das resistências o que dá pertencimento à fundação da figura do Militante Investigador, cuja pretensão é desenvolver um trabalho teórico e prático orientado a coproduzir os saberes e os modos de uma sociabilidade alternativa, a partir da potência desses saberes subalternos.
A investigação militante não trabalha a partir de um conjunto de saberes próprios sobre o mundo, nem sobre como deveriam ser as coisas. Muito pelo contrario, a única e difícil condição do militante investigador é a de permanecer fiel a seu “não saber”. Neste sentido, é uma autêntica antipedagogia (como queria Joseph Jacotot).
Como veremos na continuação, a figura do militante de investigação, então, tenta se distinguir da do investigador acadêmico, mas também do militante político, do humanitarista das ONGs, do alternativo, ou do simples bem intencionado.
Tão longe dos procedimentos próprios das instituições como de todo conjunto de certezas ideológicas, trata-se de melhor organizar a vida segundo um conjunto de hipóteses (práticas e teóricas) sobre as vias da (auto) emancipação. A investigação militante é também a arte de estabelecer composições que potenciem as buscas e os elementos de sociabilidade alternativa.
Diferentemente da investigação universitária, trata-se de trabalhar em coletivos autônomos, que não obedeçam a regras impostas pela academia, o que implica estabelecer um vínculo positivo com os saberes subalternos, dispersos e ocultos, e produzir um corpo de saberes práticos de contrapoder. Ao contrário de utilizar as experiências como campo de confirmação das hipóteses de laboratório.
Como se sabe, a investigação acadêmica está submetida a todo um conjunto de dispositivos alienantes que separam o investigador do sentido mesmo de sua atividade: deve-se acomodar o trabalho a determinadas regras, temas e conclusões. O financiamento, as tutorias, os requerimentos de linguagem, a papelada burocrática, os congressos vazios e o protocolo, constituem as condições em que se desenvolve a prática da investigação oficial.
A investigação militante distancia-se desses âmbitos (claro que sem opor-se a eles nem desconhecê-los), e tenta trabalhar sob condições alternativas, criadas pelo próprio coletivo e pelos laços de contrapoder nos quais se inscreve, procurando uma eficácia própria na produção de saberes úteis às lutas.
A investigação militante modifica sua posição: trata de gerar a capacidade de que as lutas leiam-se a si mesmas e, assim, retomam e difundem os avanços e as produções de outras experiências.
Diferentemente do militante político, para quem a política passa sempre pela política, o militante investigador é um personagem feito de interrogações, não saturado de sentidos ideológicos e de modelos sobre o mundo.
A investigação militante também não é uma prática de “intelectuais comprometidos” ou de um conjunto de “assessores” dos movimentos sociais. O objetivo não é politizar nem intelectualizar as experiências. Não se trata de conseguir que estas deem um salto, para passar do social à “política séria”.
O indício de multiplicidade é oposto a essas imagens do salto e da seriedade: não se trata de ensinar nem de difundir textos-chaves, mas de buscar nas práticas os indícios emergentes da nova sociabilidade. Se separado das práticas, a linguagem da investigação militante se reduz à difusão de um jargão, uma moda ou uma nova ideologia pseudo-universitária desprovida de ancoragem situacional.
Materialmente, a investigação militante se desenvolve sob as formas de oficina e de leitura coletiva, da produção das condições para o pensar e a difusão de textos produtivos, na geração de circuitos fundados em experiências concretas de luta, com o estudo e entre núcleos de militantes investigadores. No presente artigo tentaremos apresentar algumas elaborações surgidas a partir de nosso trabalho realizado na Argentina entre os anos 2000 e 2003.
2
A investigação militante, tal como a desenvolvemos, carece de objeto. Somos conscientes do caráter paradoxal deste enunciado — se se investiga, investiga-se algo; se não há algo que investigar, como falar de uma investigação? — E, ao mesmo tempo, estamos convencidos de que este caráter é o que lhe dá, precisamente, sua potência. Investigar sem objetualizar, de fato, já implica abandonar a imagem habitual do investigador. E o militante investigador aspira a isso.
De fato, a investigação pode ser uma via de objetualização (novamente, não é uma originalidade de nossa parte confirmar este velho saber. Não é por isso menos certo, porém, que esse efeito é um dos limites mais sérios da subjetividade habitual do investigador). Tal como o recorda Nietzsche, o homem (e a mulher) teórico/a — que é algo mais complexo que o “homem (e a mulher) que lê” — é aquele (ou aquela) que percebe a ação desde um ponto de vista completamente exterior (quer dizer, que sua subjetividade está constituída de maneira completamente independente com respeito a essa ação). Assim, o teórico (ou a teórica) trabalha atribuindo uma intenção ao sujeito da ação. Sejamos claros: toda atribuição desse tipo supõe, com relação ao protagonista da ação observada, um autor e uma intenção; lhe confere valores e objetivos, enfim, produz “saberes” sobre a ação (e o atuante).
Desta maneira, a crítica fica cega em pelo menos dois momentos essenciais: por um lado por parte do sujeito — exterior — que a exerce. O investigador não precisa se investigar. Ele pode construir saberes consistentes sobre a situação na medida em que — e, precisamente, devido a — está fora, a uma distância prudente que, supõe-se, garanta certa objetividade. E bem, essa objetividade é autentica e eficaz na mesma medida em que ela não é outra coisa que a outra cara da objetualização — violência — da situação sobre a que se trabalha.
Mas ainda há outro aspecto em que a crítica fica cega: o investigador — em sua ação de atribuir — não faz mais que adequar os recursos disponíveis de sua própria situação de investigação às incógnitas que seu objeto lhe apresenta. O investigador, por essa via, constitui-se numa máquina de outorgar — a seu objeto — sentidos, valores, interesses, filiações, causas, influências, racionalidades, intenções e motivos inconscientes.
Ambas as cegueiras, ou a mesma cegueira diante de dois pontos (em relação ao sujeito que atribui e em relação aos recursos da atribuição), confluem na configuração de uma única operação: uma máquina de julgar o bem e o mal de acordo com o conjunto de valores disponíveis.
Esta modalidade de produção de conhecimentos nos põe diante de um dilema evidente. A investigação universitária tradicional — com seu objeto, seu método de atribuição e suas conclusões — obtém, claro, conhecimentos de valor — sobre tudo descritivos — em relação aos objetos que investiga. Mas esta operação descritiva não é de nenhum modo posterior à conformação do objeto, senão que ela mesma resulta ser produtora de tal objetualização. A tal ponto que a investigação universitária será mais eficaz quanto melhor empregar estes poderes objetualizantes. Desta forma — a ciência, e em especial aquela chamada social — opera mais como separadora — e coisificadora — das situações nas que participa que como elemento interior da criação de eventuais experiências (práticas e teóricas).
O investigador (ou a investigadora) se oferece a si mesmo como sujeito de sínteses da experiência. Ele é quem explica a racionalidade do que acontece. E, como tal, fica preservado: como necessário ponto cego de dita síntese. Ele mesmo, como sujeito que dá sentido, fica excetuado de todo autoexame. Ele e seus recursos — seus valores, suas noções, seu olhar — constituem-se na máquina que classifica, torna coerente, inscreve, julga, descarta e excomunga. Enfim, o intelectual é quem “faz justiça” em respeito aos assuntos da verdade, como administração —adequação — do que existe em relação aos horizontes de racionalidade do presente.
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Então, falamos do compromisso e da militância. Por acaso estamos propondo a superioridade do militante político em relação ao investigador universitário?
Não acreditamos. A militância política é também uma prática com objeto. Como tal, ficou ligada a uma modalidade da instrumentalidade: aquela que se vincula com outras experiências com uma subjetividade sempre já constituída, com saberes prévios — os saberes da estratégia — , fornecidos de enunciados de validez universal, puramente ideológicos. Sua forma de ser com os outros é o utilitarismo: nunca há afinidade, sempre há “acordo”. Nunca há encontro, sempre há “tática”. Definitivamente: a militância política — sobretudo a partidária — dificilmente pode se constituir numa experiência de autenticidade. Já desde o começo fica presa na transitividade: o que lhe interessa de uma experiência é sempre “outra coisa” que a experiência em si mesma. Desde este ponto de vista, a militância política — e não estamos excetuando as militâncias de esquerda — é tão exterior, julgadora e objetualizante como a investigação universitária.
Agreguemos o fato que o militante humanitário — digamos, o das ONG’s — também não escapa a esses mecanismos manipuladores. Estritamente falando, a ideologia humanitarista — agora globalizada — se constitui a partir de uma imagem idealizada de um mundo já feito, imodificável, frente ao qual só resta dedicar esforços a aqueles lugares — mais ou menos excepcionais — nos quais ainda reina a miséria e a irracionalidade.
Os mecanismos desatados pelo humanitarismo solidário não só dão por encerrada toda criação possível mas, também, naturalizam — com seus misericordiosos recursos da beneficência e sua linguagem sobre a exclusão — a objetualidade vitimizante que separa a cada qual de suas possibilidades subjetivantes e produtivas.
Se nos referimos ao compromisso e ao caráter “militante” da investigação, nós o fazemos num sentido preciso, ligado a quatro condições: (a) o caráter da motivação que sustenta a investigação; (b) o caráter prático da investigação (elaboração de hipóteses práticas situadas); (c) o valor do investigado: o produto da investigação só se dimensiona em sua totalidade em situações que compartem tanto a problemática investigada como a constelação de condições e preocupações; e (d) seu procedimento efetivo: seu desenvolvimento é já resultado, e seu resultado redunda numa imediata intensificação dos procedimentos efetivos.
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De fato, toda idealização reforça esse mecanismo da objetualização. Esse é um autêntico problema para a militância de investigação.
A idealização — mesmo quando ela recaia sobre um objeto não consagrado a tais efeitos — resulta sempre do mecanismo da atribuição (inclusive se esta não acontece como a modalidade das pretensões científicas ou políticas). Porque a idealização — como toda ideologização — expulsa da imagem construída tudo aquilo que pudesse fazê-la cair como ideal de coerência e plenitude.
Acontece, porém, que todo ideal — ao contrário do que crê o idealista — está mais do lado da morte que da vida. O ideal amputa realidade à vida. O concreto — o vivo — é parcial e irremediavelmente inapreensível, incoerente e contraditório. O vivo — na medida em que persista em suas capacidades e potências — não precisa se ajustar a imagem alguma que lhe outorgue sentido ou que o justifique. É o contrário: é em si mesmo fonte criadora — não objeto ou depositário — de valores de justiça. De fato, toda ideia de um sujeito puro ou pleno não é mais que a conservação deste ideal.
A idealização oculta uma operação inadvertidamente conservadora: por meio da pureza e da vocação de justiça que parece dar-lhe origem se esconde — novamente — o enraizamento dos valores dominantes. Desde aí a aparência justiceira do idealista: quer fazer justiça, quer dizer, deseja materializar, efetivar, os valores que tem por bons. O idealista não faz senão projetar esses valores sobre o idealizado (momento no qual aquilo que era múltiplo e complexo se torna objeto, de um ideal) sem chegar a se interrogar a si mesmo sobre seus próprios valores; quer dizer, sem realizar uma experiência subjetiva que o transforme.
Esse mecanismo termina por revelar-se como o mais sério dos obstáculos do militante investigador: ao originar-se em formas sutis e quase imperceptíveis, a idealização vai produzindo uma distância insalvável. Ao ponto que o militante investigador não alcança ver senão somente o que projetou no que lhe aparece já como uma plenitude.
Daí que essa atividade não possa existir senão a partir de um trabalho muito sério sobre o coletivo mesmo de investigação; quer dizer, não pode existir sem investigar-se seriamente a si mesmo, sem modificar-se, sem reconfigurar-se nas experiências das que toma parte, sem revisar os ideais e os valores que sustenta, sem criticar permanentemente suas ideias e leituras, enfim, sem desenvolver práticas em relação a todas as direções possíveis.
Esta dimensão ética remete à complexidade mesma da investigação militante: o trabalho subjetivizante de desconstruir toda inclinação objetualizante. Em outras palavras: de realizar uma investigação sem objeto.
Como na genealogia, trata-se de trabalhar no nível da “crítica dos valores”. De penetrá-los e destruir “suas estátuas”, como afirma Nietzsche. Mas este trabalho, que está orientado por e em direção à criação de valores, não se faz na mera “contemplação”. Requer da crítica radical os valores em curso. Daí que implique um esforço de desconstrução das formas dominantes da percepção (interpretação, valoração). Não há, portanto, criação de valores sem produção de uma subjetividade capaz de se submeter a uma critica radical.
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Uma pergunta faz-se evidente: é possível fazer uma pesquisa sem, ao mesmo tempo, desencadear um processo de paixão? Como seria possível o vínculo entre duas experiências sem um forte sentimento de amor ou de amizade?
Efetivamente, a experiência da militância de investigação se parece à do apaixonado, à condição de que entendamos por amor, o que certa larga tradição filosófica — materialista — entende por tal: quer dizer, não algo que acontece a si com respeito a outros, mas um processo que, como tal, toma a dois ou mais. O que converte o “próprio” em “comum”. Um amor do qual se participa. Um processo tal não se decide intelectualmente: toma a existência de dois ou mais. Não se trata de nenhuma ilusão, mas de uma experiência autêntica de antiutilitarismo.
No amor, na amizade, ao contrário do que ocorre nos mecanismos que estivemos descrevendo até agora, não há objetualização nem instrumentalismo. Ninguém se preserva do que pode o vínculo, nem se sai daí não contaminado. Não se experimenta o amor nem a amizade de maneira inocente: todos saímos reconstituídos deles. Estas potências — o amor e a amizade — tem o poder de constituir, qualificar e refazer os sujeitos que aprisiona.
Este amor — ou amizade — se constitui como uma relação que indefine o que até o momento se preservava como individualidade, compondo uma figura integrada por mais de um corpo individual. E, por sua vez, tal qualificação dos corpos individuais que participam desta relação faz fracassar todos os mecanismos de abstração — dispositivos que fazem dos corpos quantificados objetos intercambiáveis —, tão próprios do mercado capitalista como dos demais mecanismos objetualizantes nomeados.
Portanto, consideremos este amor como uma condição da investigação militante.
Então, ao longo deste livro referimos várias vezes a este processo de amizade ou paixão, sob o nome — menos comprometedor — de composição. Diferente da articulação, a composição não é meramente intelectual. Não se baseia em interesses nem em critérios de conveniência (nem políticos nem de outra ordem). Ao contrário dos “acordos” e das “alianças” (estratégicos ou táticos, parciais ou totais) fundados em coincidências textuais, a composição é mais ou menos inexplicável, e vai mais além de tudo o que se pode dizer dela. De fato — ao menos enquanto dura —, é muito mais intensa que qualquer compromisso meramente político ou ideológico.
O amor e a amizade nos falam do valor da qualidade sobre a quantidade: o corpo coletivo composto de outros corpos não aumenta sua potência de acordo com a mera quantidade de seus componentes individuais, mas em relação à intensidade do laço que os une.
6
Amor e amizade, então: o trabalho de militância de investigação não se identifica com a produção de uma linha política. Trabalha —necessariamente — em outro plano.
Se sustentamos a distinção entre “a política” (entendida como luta pelo poder) e as experiências nas quais entram em jogo processos de produção de sociabilidade ou de valores, podemos então distinguir o militante político (que funda seu discurso em algum conjunto de certezas), do militante investigador (que organiza sua perspectiva a partir de perguntas críticas em relação a essas certezas).
Porém, é essa distinção que frequentemente perde-se de vista, quando se apresenta uma experiência como modelo, tornando-a simplesmente fonte de uma linha política.
Em certa medida, então, acreditou-se ver o nascimento de uma linha “situacionista”, como o produto idealizado da linguagem — ou melhor, o jargão — da publicação e a imagem que — aparentemente — o caderno transmite — ao menos em alguns leitores — da experiência.
Difamadores e defensores desta nova linha fizeram dela motivo de disputas e de conjuras. Não podemos, com respeito a isso, mais que admitir que, de todos os destinos possíveis deste encontro, estas reações são as que menos nos motivam, tanto pela improdutividade revelada que resulta de tais repúdios e adesões, como pela forma em que essas ditas idealizações (igualmente positivas ou negativas) acabam substituindo um olhar mais crítico sobre os que as realizam. Assim, adota-se rapidamente uma posição demasiado acabada diante do que pretende ser um exercício de abertura.
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Demos um passo a mais na construção do conceito de uma investigação sem objeto. Interioridade e imanência não são necessariamente processos idênticos.
Dentro e fora, inclusão e exclusão, são (se nos permite tal expressão) categorias da ideologia dominante: geralmente ocultam muito mais do que revelam. Isto é: a experiência do militante de investigação não é a de estar dentro, mas a de trabalhar em imanência.
Digamos que a diferença pode ser apresentada nos seguintes termos: o dentro (e portanto o fora) define uma posição organizada a partir de um certo limite ao que consideramos relevante.
Dentro e fora remetem à localização em relação a um corpo ou elemento em relação a uma disjuntiva ou uma fronteira. Estar dentro é também — nesta linha — compartilhar uma propriedade comum, que nos faz pertencer a um mesmo conjunto.
Este sistema de referências nos interroga pelo lugar onde estamos situados: nacionalidade, classe social, ou melhor, sobre o lugar no qual elegemos situar-nos diante das próximas eleições, a invasão militar à Colômbia ou a programação dos canais a cabo.
No extremo, o pertencimento “objetiva” (aquela que deriva da observação de uma propriedade comum) e “subjetiva” (aquela que deriva de uma eleição diante de) se unem para a alegria das ciências sociais: se somos trabalhadores desocupados, podemos optar por ingressar a algum movimento piqueteiro; se somos da classe média, podemos optar por ser parte de alguma assembléia de vizinhos. Sobre a determinação — pertencimento comum a um mesmo conjunto —, neste caso a classe social, se faz possível — e desejável — a eleição (o grupo de comuns com quem nos agruparemos).
Em ambos casos, o estar dentro implica respeitar um limite preexistente que distribui de maneira mais ou menos involuntária lugares e pertencimentos. Não se trata de desconhecer as possibilidades que derivam do momento da eleição — que podem ser, como no caso deste exemplo, altamente subjetivante — no momento de distinguir o mero “estar” e seu “dentro” (ou “fora”, tanto faz) dos mecanismos de produção subjetiva que surgem a partir de desobedecer estas/estes destinos até que, no limite, já não se trata de reagir diante das opções já codificadas mas de produzir pessoalmente os termos da situação.
Neste sentido vale a pena apresentar a imagem da imanência como outra coisa que o mero estar dentro.
A imanência refere-se a uma modalidade de habitar a situação e trabalha a partir da composição — o amor ou a amizade — para dar lugar a novos possíveis materiais de dita situação. A imanência é, pois, um co-pertencimento constituinte que atravessa transversal ou diagonalmente as representações do “dentro” e do “fora”. Como tal não se deriva do estar, mas requer uma operação do habitar, do compor.
Resumindo: imanência, situação, composição, são noções internas à experiência da militância de investigação. Nomes úteis para as operações que organizam um futuro comum e, sobretudo, constituinte. Se em outra experiência tornam-se jargões de uma nova linha política ou categorias de uma filosofia de moda — assunto que não nos interessa em nada — obterão, seguramente, um novo significado a partir desses usos que não são os nossos.
Em outras palavras: a diferença operativa entre o “dentro” da representação (fundamento do pertencimento e da identidade) e a conexão de imanência (o devir constituinte) passa pela maior disponibilidade que esta última forma nos conceda para participar de novas experiências.
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Parece que chegamos a produzir uma diferença entre o amor-amizade e as formas de objetivação contra as que pretende aumentar a figura — precária, insistimos — do militante investigador.
No entanto ingressamos no assunto — fundamental — da ideologização do enfrentamento.
A luta ativa capacidades, recursos, ideais e solidariedades. Como tal nos fala de uma disposição vital, de dignidade. Nela, o risco da morte não é buscado nem desejado. Por isso que o sentido dos companheiros mortos não nunca é pleno, mas doloroso. Este drama da luta é, entretanto, banalizado quando se ideologiza o enfrentamento, até postulá-lo como sentido excludente.
Quando isto acontece não há lugar para a investigação. Como se sabe, ambas — ideologia e investigação — tem estruturas opostas: enquanto a primeira se constitui a partir de um conjunto de certezas, a segunda só existe a partir de uma gramática das perguntas.
Porém, a luta — a luta necessária, nobre — não leva sozinha à exaltação do enfrentamento como sentido dominante da vida. Sem dúvidas que o limite possa parecer algo débil no caso de uma organização em luta permanente como uma organização piqueteira e, apesar disso, dar por garantido este ponto seria prejulgá-lo.
Diferentemente da subjetividade militante que costuma sustentar-se num sentido dado pela polarização extrema da vida — a ideologização do enfrentamento —, as experiências que buscam construir outra sociabilidade procuram ativamente não cair na lógica do enfrentamento, segundo a qual a multiplicidade da experiência se reduz a este significante dominante.
Então, o enfrentamento, por si mesmo, não cria valores. Como tal, não vai mais além da distribuição dos valores dominantes.
O resultado de uma guerra nos indica quem se apropriará do existente. Quem terá o direito de propriedade dos bens e valores existentes.
Se a luta não altera a “estrutura de sentidos e valores”, só se assiste a uma transformação de papéis, o que é toda uma garantia de sobrevivência para a estrutura mesma.
Neste ponto se desenham diante de nós duas imagens completamente diferentes da justiça — porque definitivamente trata-se disto. De um lado, a via da luta pela capacidade de exercer a máquina de julgar. Fazer justiça é atribuir-se para si o que se considera justo. É interpretar de outro modo a distribuição dos valores existentes. A outra sugere que aquilo do que se trata é o tornar-se criador de valores, de experiências, de mundo.
Por isso que toda luta — que não seja idealizada — tenha essa dupla direção que parte da autoafirmação: para “dentro” e para “fora”.
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A investigação militante não busca uma experiência-modelo. Ao contrário, afirma-se contra a existência de tais ideais. Será dito — e com razão — que uma coisa é declamar este princípio e outra muito diferente é alcançá-lo praticamente. Será possível concluir também — e aqui começam nossas dúvidas — que para que este nobre propósito seja realidade faria falta fazer as “nossas críticas” explícitas. Por isso, se se observasse bem a demanda, ver-se-ia até que ponto o que nos estaria sendo pedido seria guardar o modelo — agora de maneira negativa — para comparar a experiência real ao modelo ideal, mecanismo que utilizam as ciências sociais para extrair seus “juízos críticos”.
Como se vê, todas estas reflexões sobre a crítica e a produção de conhecimentos não são assuntos menores, e não o são porque dizem respeito a formas de justiça (e o juízo não é outra coisa que a forma judicial da justiça). Este artigo não pode oferecer nada parecido a um fato jurídico, nem prover recursos para fazer juízos com outras experiências. Muito pelo contrário: se algo pretendemos, os seus autores — cadáveres que, falando, escrevem — foi oferecer uma imagem diametralmente oposta à da justiça, fundada na composição. Para que serve isto? Não há respostas prévias.
Setembro de 2003
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Este artigo está composto por recortes de dois escritos distintos nos quais, com diferença de um ano entre um e outro, nos ocupamos da investigação militante. De um lado, se reproduzem partes de Por una política más allá de la política, ensaio publicado no livro Contrapoder, una introducción, Buenos Aires, Edições de mão a mão, outubro de 2001. Por outra parte, reúne boa parte do texto Sobre el método, que serve de prólogo ao livro La Hipótesis 891. Más allá de los piquetes, escrito pelo nosso Coletivo em coautoria com o Movimiento de Trabajadores Desocupados de Solano, Buenos Aires, Edições de mão a mão, outubro de 2002.
www.situaciones.org - colectivo@situaciones.org
Este texto foi traduzido por Milla Jung com a permissão dos autores como encarte para a tese Arte Ocupação, práticas artísticas e a invenção de modos de organização.
Em breve
A arte como produção de modos de organização
Apresentação de Marcelo Expósito no Museu de Arte Contemporânea de Castilla y León, MUSAC, em 2014.
Basicamente, a inquietude é...
Como podemos, de uma maneira muito decidida, sair de um enfoque sobre a arte, a crítica, a historiografia da arte, que rompa com a tradição objetocêntrica ou centrada no objeto? Como, de verdade, podemos começar a falar de práticas artísticas sem nos preocupar em absoluto pelos objetos, pelas coisas materiais que se produzem ou, em qualquer caso, tratar os objetos ou essas coisas materiais, os objetos que se produzem, como condição para pensar a prática da arte de uma maneira diferente, que eu proponho que seja, e como diz o título da conversa de hoje, como produção de modos de organização?
Talvez pareça uma ideia meio visionária, vanguardista, mas na realidade, para sustentá-la, basta nos remetermos a dois textos de Walter Benjamin dos anos 1930 que, como já podem supor, são: “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” e “O autor como produtor”. Um do ano 1934, e o outro de 1936.
A estes dois textos muito conhecidos de Benjamin, talvez não se tenha prestado tanta atenção no âmbito da Filosofia como se presta atenção habitualmente aos seus textos aparentemente centrais.
O texto “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” é um texto evidentemente muito usado na História e na crítica de arte, mas seguramente é um texto no qual se prestou atenção com más interpretações em sua leitura.
No meu modo de ver, os títulos destes dois textos estão equivocados. “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” parece que fala da obra de arte, “O autor como produtor” parece que fala do autor.
Na realidade, o texto sobre a obra de arte não fala tanto da obra, mas da produção do espectador, e o que propõe é descentralizar o conceito de obra para acabar falando como os dispositivos artísticos produzem um determinado tipo de subjetividade espectatorial. Enquanto “O autor como produtor”, que parece que fala sobre autoria, efetivamente, o que propõe é descentralizar a figura do autor para falar do modo de produção da prática literária, neste caso, estrito ao que o texto se refere. Ou da produção cultural ou da prática artística, se quisermos, e de modo muito mais geral, como criação/invenção de novos modos de produção.
Eu proporia entender esta questão da organização dos modos de produção de uma forma também mais ampla para pensar os modos de organização, isto é, a produção como organização ou a organização da produção.
O equívoco dos títulos destes dois textos fundamentais decorre do fato de Benjamin propor em relação a estas figuras centrais da modernidade, a obra e o autor, justamente descentralizá-las para colocá-las à margem ou condicioná-las a estas outras questões que acabo de mencionar. Por um lado, no caso de “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, a obra é pensada como um dispositivo de produção de subjetividade ou de politização através da subjetivação espectatorial no interior de um dispositivo artístico. E no caso de “O autor como produtor”, o trabalho do autor é visto como invenção de modos de produção ou como invenção de modos de organizar a produção.
Certamente, o que Benjamin coloca em alguns momentos de modo um tanto especulativo ou que parece que é um tanto especulativo está baseado fundamentalmente nas experiências artísticas, teatrais, cinematográficas materialistas, soviéticas, comunistas, nos anos 1920 e 30. Fundamentalmente, o modelo ao que Benjamin se refere e que, de fato, cita literalmente em “O autor como produtor” é o modelo do trânsito das artes construtivistas – das artes plásticas, do teatro construtivista – às práticas produtivistas na União Soviética entre os anos 1920 e 30.
O trânsito do construtivismo ao produtivismo não é muito conhecido porque de fato é uma das áreas mais escuras da gigantesca constelação das vanguardas artísticas, entre os anos 1910 e os anos 30, basicamente na Europa do entre-guerras. Os motivos desse escurecimento não são muito estranhos, pois iluminar essas práticas produtivistas, como vem sucedendo, sobretudo, nas últimas duas décadas, significaria colocar de cabeça para baixo praticamente todo o conhecimento que se produziu ao redor da história das vanguardas durante o século passado.
A hipótese produtivista, de alguma maneira, é bem simples: trata-se de passar da fase experimental, de laboratório, especulativa das vanguardas, a literalmente extravasar a estrutura da instituição artística, fazer isso sem abandonar as hipóteses, as ferramentas, os protótipos colocados em funcionamento ou inventados justamente pelas vanguardas nessa fase especulativa, nessa fase de laboratório. Não abandonar, porém extravasar o âmbito da instituição artística, colocando-o a serviço de outra coisa. Que é essa outra coisa? É a produção social, posta a serviço de organizar a cooperação social.
No caso das vanguardas contextualizadas no âmbito geográfico da União Soviética, essa produção social consiste, exatamente, na construção do socialismo, mas não podemos confundir a hipótese do extravasamento das vanguardas com a organização da produção social que se dá no âmbito geopolítico da União Soviética. Por exemplo, talvez de algum modo seja isto o que esteja por detrás do que impulsiona definitivamente a invenção da fotomontagem no dadaísmo político na Alemanha entre os anos 1920 e 30.
De uma maneira mais geral, podemos detectar indícios, experiências, justamente deste extravasamento, repito, de sua fase de laboratório, para além dos limites da instituição artística em direção a uma prática artística que consiste em inventar modos de organizar a produção e a cooperação social em muitos outros lugares.
A ideia, a única ideia, que eu gostaria de submeter a esta conversa, mostrando quatro ou cinco exemplos, é: como podemos deslocar, de uma maneira muito radical, seguindo a síntese teórica que elabora Walter Benjamin nos anos 1930, estas duas figuras centrais na teoria e na prática artística da modernidade, que são o autor e sua obra, para considerá-las como uma prática de arte fora deste peso tão forte que tem a tradição centrada no objeto?
E pensar o título da conversa de hoje, “A arte como invenção e como produção de modos de organização”, como forma de organizar a cooperação. Talvez a colocação desta ideia nos possibilite pensar de que maneira se pode entender o aparente paradoxo ao qual Elena se referiu quando fez minha apresentação: como pode alguém apresentar-se como artista quando em realidade, dentro de sua prática, coloca em primeiro plano tarefas como a docência, o ativismo social, a tradução, a edição de materiais ou uma situação como a de hoje, como se pode considerar uma situação como a que aqui estamos organizando entre nós? Pode-se considerá-la como parte de uma prática artística? Se pensamos justamente a prática da arte como a invenção de modos de organização, de modos de organizar a produção e a cooperação social... Aí temos uma chave.
Não estamos produzindo um objeto, não estamos produzindo uma coisa tangível, estamos produzindo tangíveis e intangíveis. Um tangível que é este dispositivo para poder cooperar, para poder produzir conhecimento cooperativamente. E estamos produzindo um intangível, que é o próprio fato de cooperar produzindo conhecimento, o conhecimento que se produz cooperativamente.
O público pergunta sobre qual seria o papel do artista diante deste novo paradigma.
Qual é o papel do artista, nesse caso, na forma de organização? O artista é alguém que na hora de produzir a cooperação social contribui ou disponibiliza ferramentas que são tradicionalmente específicas de sua prática. Ele disponibiliza aquilo que pertence à bagagem do que tradicionalmente foi característico da história da arte ou da história das vanguardas, por exemplo.
A cooperação social, atualmente, significa exatamente disponibilizar ferramentas justamente para que esta cooperação seja potencializada de maneira autônoma, e não condicionada aos mecanismos de valoração que são característicos do capitalismo. O que o artista faz é disponibilizar ferramentas, muitas destas já compartilhadas com outras práticas.
Comentário do público sobre algum caso específico, não é possível entender o caso explicitado em questão.
Mas não se pode discutir a priori. Há que elucidar as perguntas sobre práticas específicas. É uma tendência muito habitual na teoria estética, na teoria da crítica de arte, fazer uma projeção quase permanente em nível abstrato, eu acho que temos que fazer um trabalho permanente de ida e volta entre a abstração e a concreção de práticas materiais concretas na hora de nos perguntar como se faz esta disponibilização das ferramentas artísticas em composição com outras. Mas não ao nível abstrato. O que, sim, é certo, e que podemos aprender das vanguardas do período ao qual estou me referindo, para que seja eficaz esta disponibilização destas ferramentas artísticas com outras ferramentas, para que esta composição seja eficaz, faz falta que não sejam legíveis a priori como artísticas ou que não estejam pré-codificadas como ferramentas artísticas. O que justamente tem a ver com a condição de sua eficácia tem a ver com que não sejam legíveis como artísticas.
Por exemplo, os pavilhões de propaganda desenhados por El Lissitzky para os governos da União Soviética na década dos anos 1930, entre os anos 1920 e 30, não são legíveis como obras artísticas. Porém, ele dizia que os pavilhões eram a obra mais importante de toda sua trajetória, mas não há nenhuma obra de arte, a obra também não é o pavilhão. A obra pode ser todo o conjunto do dispositivo, o trajeto da prática de cooperação entre sujeitos que provêm de determinadas disciplinas, a inter-relação entre o trabalho autônomo cooperativo de especialistas desta disciplina, a articulação disso com as linhas e as diretrizes políticas que emanam de um governo socialista, a interação disso com um projeto de construção do socialismo numa sociedade delimitada no tempo e no espaço, a inserção destes pavilhões em dispositivos de comunicação mais amplos – como são as exposições universais, por exemplo, a subjetivação do público no interior destes pavilhões. Tudo em seu conjunto é a obra, e aí não há obra de arte, não há nem sequer um autor.
Mas o fato de que El Lissitzky tenha dito que era a obra mais importante de sua vida, creio que de alguma maneira é um indício que temos que levar a sério, esses pavilhões como algo que sintetiza o conjunto de sua prática como desenhista, editor, artista, arquiteto. E que, finalmente, se disponibiliza num dispositivo que não é legível como uma obra de arte e no qual, justamente, sua eficácia como dispositivo de comunicação é melhor quanto menos seja legível como obra de arte. É importante vê-lo em modelos específicos.
Ainda vou fazer uma citação de “O autor como produtor”, que está no caderninho de Gerald Raunig que acabo de traduzir. Benjamin dizia:
A prática da arte, a prática do autor como produtor, nunca será somente o trabalho sobre os produtos, mas também, e ao mesmo tempo, o trabalho nos meios de produção, em outras palavras, seus produtos tem que possuir junto a, e antes que seu caráter de obra, uma função organizadora.
[BENJAMIN, 1936]
Quer dizer que podemos pensar que a prática da arte, segundo Benjamin, tem que começar a ser algo mais, algo além dos produtos, podemos inclusive chegar a dizer que o produto de uma prática, em realidade, é não tanto o objeto, mas sua função organizadora, sua função de invenção de modos de organizar a produção.
Neste momento, Expósito apresenta os três exemplos, os movimentos ACT UP, Gran Fury e El Siluetazo.
A imagem do primeiro exemplo que eu queria trazer para a discussão começa a circular no final dos anos 1980 nas ruas de Nova York. É uma imagem de um triângulo equilátero de cor rosa que repousa num dos seus lados e aponta para cima um de seus vértices, sublinhado abaixo por duas palavras, “silêncio” e “morte”, que estão conectados por um signo de “igual”.
Este signo não era imediatamente legível para todos os transeuntes da cidade de Nova York, mas completamente legível para os membros da comunidade gay e lesbiana da cidade, porque o triângulo equilátero se utilizava para sinalizar os homossexuais nos campos de concentração e de extermínio nazi. Entretanto, o triângulo que se utilizava para marcar os homossexuais nos campos de concentração era um triângulo invertido, que apontava para baixo; este signo, portanto, o que produz é uma reversão, pois o triângulo agora aponta para cima.
O efeito semântico é imediato, um triângulo que aponta para baixo é um signo negativo, e um triângulo que aponta para cima é um signo positivo. A reversão do triângulo que aqui neste desenho se produz responde aos mesmos princípios políticos que puseram em prática os movimentos baseados numa política de identidade, que nos anos 1980, como sabem, tinham como uma de suas intervenções mais chamativas o fato de se apropriarem de sinalizações que habitualmente são estigmatizadoras dos comportamentos que a norma, a heteronorma, considera desviados – veado, puta, negro, sapatona – para apropriá-los como signos de identidade, signos de orgulho, como uma identidade em positivo.
Este triângulo faz exatamente isto, sinaliza os homossexuais na véspera de serem exterminados ao serem capturados pelo dispositivo exterminador. Ao ser revertido, se mostra como um signo positivo, que aponta para cima e não para baixo.
O sublinhado das duas palavras, “silêncio” = “morte”, era legível naquele momento no qual o signo começou a circular pelas ruas de Nova York pelos membros daquela comunidade que estavam começando a ser afetados por uma pandemia, uma doença sobre a qual naquele momento se tinha pouca informação, a AIDS. Silêncio = morte se referia literalmente a que o silêncio em torno da doença era equivalente à morte massiva de grupos inteiros da população.
Este signo, o que estava literalmente chamando era a necessidade de falar, de atuar, de tornar visível o que se estava vivendo como um drama, um trauma, e como uma enfermidade e mortes de massa em círculos reduzidos.
O triângulo equilátero se converteu muito rápido no logotipo principal de um movimento e rapidamente se converteu no Movimento Internacional ACT UP, que num primeiro momento consistia na organização de espaços de apoio mútuo onde as personas afetadas pelo HIV podiam compartilhar sua experiência da doença, e este compartilhamento era a plataforma a partir da qual se projetava literalmente uma política de atuação pública que não somente já permitia que determinado sujeito se representasse publicamente, mas que, além disso, lhes permitia atuar politicamente para neutralizar os efeitos sociais negativos espantosos da pandemia de uma maneira distinta da sua representação como vítimas.
Na realidade, essa duplicidade de uma organização social, que é ao mesmo tempo uma rede de apoio mútuo e se converte numa plataforma de denúncia pública e de auto-organização da denúncia, é a matriz a partir da qual se organizam muitos movimentos característicos do atual ciclo de conflitos, desde os finais dos anos 1980 ao princípio dos 1990 e adiante.
Se pensamos na PAH, a Plataforma dos Afetados pela Hipoteca, na Espanha é exatamente isso, um espaço de apoio mútuo onde pessoas que num primeiro momento vivem de uma maneira angustiada, que vivem se auto vitimizando, numa situação como uma crise social, este espaço de apoio mútuo se converte imediatamente em uma estrutura de organização que é de denúncia. Justamente, as pessoas que se veem afetadas, já não como vítimas, mas como pessoas que sendo afetadas são justamente especialistas capazes de denunciar para fora quais são as condições políticas em que acreditam que se deve enfrentar esta crise social. Também é uma plataforma imediata de organizar uma maneira coletiva de confrontar esta crise.
Digamos que ACT UP é um dos casos principais, um dos primeiros, que justamente se pode pensar como muitos movimentos do atual ciclo de protestos, que constitui uma matriz biopolítica, porque, no caso de ACT UP, o vemos muito claro, no caso da PAH, o que vemos é como uma crise social faz sintoma nos corpos como o lugar onde simultaneamente o poder se exerce e o contrapoder se contrapõe ao exercício de um poder externo.
No caso da AIDS, são bem claras as negligências ou os interesses que são característicos do ciclo capitalista neoliberal, que definitivamente é o que faz com que a epidemia do HIV se estenda e literalmente produza a morte de camadas massivas da população civil. Aí vemos claramente como o poder controla os lugares onde a vida se produz e se reproduz e onde a morte também se exerce. E vemos no caso de ACT UP como atuar a partir dos corpos é literalmente pensar os corpos como um lugar a partir do qual um contrapoder biopolítico também se opõe a um biopoder que se exerce de fora.
No caso da PAH, também podemos entendê-lo perfeitamente, como os outros movimentos do ciclo atual, os corpos interiorizam mediante os sintomas de ansiedade, de depressão, de neurose, aquilo que consideram como um fracasso próprio na hora de responder a exigências de promoção e triunfo social. E justamente o espaço de apoio mútuo que organiza o movimento é o lugar onde os corpos podem pensar que a ansiedade, a depressão, a neurose, inclusive a morte, é um efeito sobre o próprio corpo de algo que é um exercício de um poder externo, portanto é um biopoder. Um poder que afeta literalmente os lugares onde a vida é produzida.
Sempre foi assim, e podemos pensar, neste sentido, que a fábrica tradicionalmente não foi somente um dispositivo de produção material, mas de subjetivação, um lugar onde também se modelou a subjetividade da força de trabalho de uma maneira que a submetia aos interesses do capital.
Pensemos que os sindicatos são tradicionalmente um contrapoder em termos de biopoder, um sindicato é aquele lugar que não somente se articulam as reinvindicações de tipos materiais, melhores salários, melhores condições de vida para os trabalhadores, mas que estas reinvindicações afetam literalmente como os corpos buscam, não somente se organizar, mas também produzir e reproduzir suas condições de vida de outra maneira.
O interessante é que, num sentido tradicional, a fábrica e o sindicato são dois dispositivos contrapostos e diferenciados, nos quais o poder e o contrapoder se exercem como forças contrárias. No caso de ACT UP, o corpo toma literalmente a posição central e é onde o biopoder se exerce e uma biopolítica em termos de contrapoder também se exerce como um poder contrário, nele simultaneamente o poder e o contrapoder tomam forma.
Parece-me que o mais interessante é se pensamos nos movimentos do ciclo atual, nos quais o poder e o contrapoder tomam forma nos mesmos dispositivos, ao contrário da situação colocada na fábrica e no sindicato.
Este é um cartaz realizado por um dos coletivos mais conhecidos de artistas que trabalharam no seio do ACT UP no final dos anos 1980 e princípio dos 1990, que é o grupo Gran Fury. É um dos cartazes caraterísticos que o grupo realizou num tipo de relação semiautônoma com a organização de ACT UP. É interessante ler este cartaz de cima para baixo, uma mensagem que vai acumulando camadas de sentido seguindo o aumento do tamanho da tipografia. A primeira frase que começa o cartaz, “com 42.000 mortes”, nos situa na dimensão espantosa de 42.000 mortes. Se na pandemia da aids já houve 42.000 mortes, pensemos como essa cifra aumenta em eco, pensando também quais são as potenciais mortes pelos afetados pelo HIV e como também estas mortes afetam os companheiros e familiares dos afetados, etc.
A segunda camada de sentido, numa tipografia maior, diz que a arte não é suficiente. Prestem atenção que não diz que a arte não serve mais, ou que há de se abandonar a arte, mas que a arte não é suficiente. Na minha opinião, esta frase entra em diálogo com algumas posturas adotadas por certas tendências de radicalização artística que nos anos 1960 e 1970 fizeram com que muitos coletivos abandonassem a prática da arte para abraçar a prática política, ativista, por exemplo, no caso da América Latina, para abraçar as correntes de luta armada. Então o que o cartaz enuncia é que se a arte não é suficiente, a pergunta é, então, o que faz falta a arte ser, ou, o que deve somar-se à arte para que seja suficiente ou para começar a ter uma função que efetivamente possa diminuir a dimensão das 42.000 mortes que se enuncia na primeira frase?
A resposta nos dá o corpo central do cartaz, que é a parte de maior tipografia: adotar a ação direta coletiva para pôr fim na crise da aids. Ação direta + as ferramentas tradicionais que a arte herda da tradição das vanguardas, uma somatória proposta pelo Gran Fury que propõe-se como metodologia para efetivamente confrontar esta crise.
Habitualmente, o que se faz em qualquer exercício de teoria, de crítica e de historiografia de arte é trabalhar sobre as imagens que a prática artística produz. Mas de acordo com o enunciado que propus para a fala de hoje, o que devemos prestar atenção é a maneira que essas imagens servem para organizar, para produzir, um modo de organização.
Estas são imagens muito características de desobediência civil e de ação direta exercitas pelo ACT UP nos espaços públicos. Não importa exatamente que ação é: poderia ser, por exemplo, a interrupção da abertura de um curso judicial em qualquer corte ou audiência de algum edifício judicial importante da cidade de Nova York. Ou poderia ser a interrupção de entrada em qualquer congresso da indústria farmacêutica em qualquer cidade do mundo. O que importa é que são corpos que interrompem o uso habitual daquilo que na linguagem comum se chama de espaço público, mas que de fato não é um espaço público.
O que denominados tradicionalmente como espaço público são em realidade espaços sob o controle dos interesses da administração, do aparato do Estado e do capital. O espaço público do centro da cidade está perfeitamente regulado por esses interesses da administração e pelos interesses do capital: são escritórios, bancos, etc. O que faz uma ação como essa é interromper, cancelar esse uso, para dar-lhe um uso político distinto. Podemos dizer que o que uma ação como essa faz, não é tanto ocupar um espaço público, mas sim dotar de condição pública a um espaço que em realidade não é. Espaço que começa a ser público não por conta da interrupção que os corpos executam, mas porque interrompem o uso habitual desse espaço. Quando, por exemplo, ocupa-se uma praça em qualquer ação do 15M e a delegada de governo (Cristina) Cifuentes diz que se deve levantar esse acampamento porque o espaço é público e é de todos, na realidade, o que há nisso é uma disputa entre dois tipos de legitimidade, dois tipos de concessão do que é público. O que o 15M faz não é interromper o uso público deste espaço, é converter em público o que em realidade não o é — acampar é dotar de condição pública este espaço.
O que é interessante nessa imagem é ver como o signo de silêncio = morte circula inscrito nos corpos. Se historicamente o triângulo rosa apontando para baixo sinalizava os corpos em vias de desaparição, o triângulo rosa apontando para cima, ao contrário, está sinalizando corpos que estão empoderados, que exercem um contrapoder e reconstroem a condição pública do espaço, para chamar a atenção sobre a opinião pública sobre quais as condições em que se desenvolve a pandemia da aids. Vemos ainda que estes corpos estão entrelaçados, compondo uma figura coletiva. Parece-me importante prestar atenção a esta imagem justamente para poder entender essa ideia de que, se a imagem de ACT UP tem um valor artístico, não é porque podemos analisá-la como um objeto isolado, como um objeto autônomo, mas na medida em que serve para disparar a arte como um modo de organização.
Esta é uma manifestação em que vemos como o signo silêncio = morte se utiliza traduzido em diferentes idiomas. Então na obra há mais de uma matriz, que é declinável, desconstruível, transformável, dependendo de quem dela se aproprie. Isto é bem interessante porque o que é que dota de valor uma obra de arte na tradição da crítica de história? O ser singular, o ser irrepetível: se um quadro que eu pinte vale mais do que o que você pintar, é porque só eu posso fazê-lo. Qual é o valor de uma produção visual quando estamos falando de arte como ativismo artístico ou como a arte como modos de organização? Seu valor justamente é poder ser reapropriável e transformável por outros. Se eu produzo algo que só eu posso pôr em prática, ou só é atribuível a mim, então não tem nenhum valor para os demais. Aqui justamente é seu contrário, tem valor porque é reapropriável, modificável por outros. Até o ponto que podemos dizer, como dizia num texto referido ao coletivo Ne Pas Plier, que escreveu Brian Holmes há uns anos, “seu valor é seu uso”. Na medida em que pode ter um uso, aí está seu valor.
El Siluetazo
Bom, estamos no final do ano de 1983, em Buenos Aires, a última ditadura cívico-militar na Argentina começou em 1976 – nos últimos anos, na Argentina, chamam a ditadura de cívico-militar, como também deveríamos chamar o franquismo cívico-militar na Espanha, pois como lá dizem os movimentos pelos direitos humanos, a ditadura não foi somente militar, foi uma trama entre militares e civis. Como aqui também foi o Franquismo.
Voltando ao assunto, estamos nos últimos meses da ditadura cívico-militar, ano 1983, as mães da Praça de Maio vão organizar uma das que hoje se denominam marchas da resistência, que é uma das numerosas invenções que saíram das cabeças, das mãos e dos corpos das mães da Praça de Maio.
As “Madres” (Madres de la Plaza de Mayo) foi um movimento de invenção de dispositivos de sinalização, de denúncia, de auto-organização, verdadeiramente fabuloso. E uma destas invenções das Madres foi a marcha da resistência, em que consistia a marcha da resistência? Que ainda hoje, ocasionalmente, ocorre. Consistia em tomar a Praça de Maio durante uma tarde, organizar um ato de sinalização, de comunicação política, aguentar toda a noite, e se conseguisse aguentar toda a noite, na manhã seguinte, se marcharia através da Avenida de Maio, seguindo o eixo que leva até o Congresso.
Esta é a imagem geral que oferecia esta marcha da resistência, uma imagem bem estranha, que antes nunca se havia visto. Uma multidão pintando silhuetas e disseminando-as pelos arredores da praça.
Um livro, publicado há uns quatro ou cinco anos, editado por Ana Longoni e Gustavo Bruzzone, com o título de Siluetazo, acabou por nos revelar o que tinha sido uma certa incógnita ao redor de como surge a ferramenta de sinalização dos corpos dos desaparecidos, que foi uma das duas principais matrizes de sinalização dos desparecidos, impulsionadas pelo movimento dos direitos humanos na Argentina. Por um lado, as silhuetas, por outro lado, as fotos dos desaparecidos, que são trazidas nos corpos (ou em alça, em ampliações) dos familiares, filhos, mães e avós pela ditadura cívico-militar.
O livro de Ana Longoni e de Bruzzone nos revela que o Siluetazo foi um movimento idealizado por três artistas, Guillermo Kexel, a quem pertence esta fotografia que estou mostrando, Julio Flores, ambos vivos, e Rodolfo Aguerreberry, falecido.
Eles três tinham pensado, ainda durante a ditadura, em produzir uma obra que servisse para sinalizar o que naquele momento já se manejada como cifra dos presos desaparecidos pela ditadura, a terrível cifra de 30.000 pessoas. Originalmente, iriam apresentar esta proposta/projeto para um prêmio de arte, que depois se cancelou. Não sabiam muito bem o que fazer com este projeto. Porque, de todas as maneiras, não havia como executá-lo, pois tinha uma série de problema práticos, por exemplo, não havia parede suficiente nos museus de toda a Argentina para colocar 30.000 silhuetas em tamanho real. E, por outro lado, não era fácil que três pessoas sozinhas pudessem produzir 30.000 silhuetas em um curto prazo.
Decidem levar a ideia para as Madres da Praça de Maio, que justamente estão preparando a terceira marcha da resistência. As Madres imediatamente adotam o projeto e lhe introduzem uma série de modificações.
O projeto se executa nesta marcha até que finalmente vai-se multiplicando sem saber que originalmente era uma proposta de três artistas. E se adota, como digo, utilizando a linguagem de historiadora de arte Ana Longoni, como uma das duas matrizes principais de sinalização dos desaparecidos até a data de hoje.
Há várias questões para se constatar no Siluetazo, a primeira é que justamente no trânsito de ser um projeto de três artistas a ser adotado pelas Madres e multiplicar sua execução na praça, vemos justamente o momento de extravasamento de um projeto que é uma proposta pensada nos limites dos parâmetros da instituição artística para ser uma proposta que extrapola estes parâmetros e converte-se literalmente numa prática coletiva.
Aí vemos também o fato de que, como vimos antes no caso de ACT UP, e volto a citar a ideia de Brian Holmes de acordo com o qual o valor de uma produção deste tipo é o uso que se pode dar. Aqui vemos isto claramente. O valor das silhuetas é justamente seu uso multiplicável, a propriedade que tem de ser suscetível, apropriada e multiplicada em sua execução como uma imagem de sinalização.
Na conversa que fizemos antes de ontem, alguém se opôs ao Siluetazo, o levantou desde o ponto de vista estético, que são imagens que não têm muito valor desde o ponto de vista pictórico. Chamo a atenção para o fato de que há dois motivos principais que constituem o êxito da multiplicação do Siluetazo como prática de sinalização, e estas duas características são as seguintes:
A primeira, a facilidade em sua execução, o Siluetazo pode se multiplicar e ainda hoje se multiplica como prática de sinalização pela extrema simplicidade de sua execução. Se fosse uma imagem mais complexa de executar, não se poderia multiplicar. O fato de ser extremamente simples, o que para um crítico de arte significaria pobreza como imagem icônica, em termos políticos é justamente este o valor de sua multiplicação, porque pode ser apropriada.
E outra coisa bem importante, falando nesses termos, o Siluetazo desloca o lugar de sua realização para fazê-lo simultaneamente no lugar de sua exibição, dito de um modo muito bruto, desloca o estúdio e o sobrepõe ao lugar onde se exibe. O fato de que a silhueta se faça deste modo, neste lugar, significa que é uma das chaves de sua multiplicação, constitui uma pedagogia de si no espaço público, as pessoas que transitam pelo espaço veem como se executa uma imagem que é extremamente simples de se realizar e somam-se à produção, assim é a produção cooperativa das silhuetas.
Este é um dos casos, que antes mencionei, no qual a eficácia da prática é inversamente proporcional a seu reconhecimento como artística. Se eu pinto uma silhueta incrível no estúdio e a tiro para a rua, como um mural, você diz: “É incrível!”. Mas você não se soma à execução. Se eu e você, que somos artistas, pintamos um mural diretamente na praça e o fazemos com muito virtuosismo, também somos reconhecidos pelo virtuosismo de sua execução, mas é raro que alguém se some para multiplicar esta imagem. Na medida em que a imagem se executa por qualquer um no espaço público, não se reconhece como artística, mas literalmente como uma sinalização, e vê-se claramente, no momento, como é simples sua execução, que isto permite que tenham sujeitos que se somem e, além disso, que a adaptem às suas condições e aos seus limites para reproduzi-las.
Esta é uma imagem de Eduardo Gil, a polícia desorientada justo olhando as silhuetas, não sabem o que fazer. Além do mais, aqui, os policiais não sabem o que é, não sabem o que fazer com isto. Porque nem sequer é uma bandeira que diga um lema político.
Há várias questões para assinalar no Siluetazo, a primeira: transforma completamente o que entendemos por comunicação política. Habitualmente, a comunicação política, em seu sentido mais tradicional de esquerda, utiliza um canal para diretamente/literalmente canalizar uma mensagem. Aqui não há uma mensagem canalizada, não há mensagem literal, algo estão dizendo claramente as silhuetas, algo tem a ver com os desparecidos, mas não é um lema que denuncia algo concreto, digamos que comunica, por um lado, o fato de que a ditadura está exercendo uma prática de desaparecimento, mas, além da comunicação, há algo que produz uma comoção em quem participa das silhuetas e em quem as encontra na rua.
A técnica de execução de silhuetas mais interessante é aquela em que alguém põe o corpo sobre o papel no chão, se siluetea e depois coloca a sua silhueta na parede. Porque aí se produz algo, como apontaram alguns autores, como um exercício de transmissão.
Vejam que o que a prática de desaparecimento procura é literalmente fazer desaparecer um corpo, apagar a identidade de algo, que um sujeito desapareça, desfazê-lo ao máximo. O que faz a silhueta é, através do corpo de alguém que está presente, voltar a dar presença a um corpo que a ditadura fez desaparecer. Aí há algo mais que a mera comunicação de um lema, de uma mensagem. Há algo que, de algum modo, produz uma comunicação entre os sujeitos que não estão e os sujeitos que estão. O corpo daquele que está se dispõe a presentificar alguém através de uma silhueta, que é uma figura genérica; mesmo que em algumas silhuetas se possam incluir os dados de pessoas concretas que foram desaparecidas. Há um elemento interessante.
E outro elemento interessante é que, habitualmente, inclusive a partir dos parâmetros que não são os tradicionais, quando falamos do Siluetazo, tendemos a pensar como a silhueta opera, que efeitos operam na silhueta, e para mim esta imagem que compôs Kexel parece muito interessante, porque aqui vemos que o Siluetazo, para além dos efeitos que poderiam ser produzidos disto como figura, é, na medida que estou propondo hoje, um modo de organização. O Siluetazo é uma forma de organizar o protesto no espaço público. O enquadramento da praça diante do Siluetazo não é igual ao que seria sem ele. O Siluetazo obriga a organizar o protesto de uma determinada maneira, é um modo de organização.
Quando fiz um vídeo, perguntei a Kexel qual tinha sido a metodologia concreta que tinham utilizado para implantar o Siluetazo num primeiro momento na praça e como tinha sido literalmente o processo de multiplicação da execução das silhuetas. É bem interessante, porque comentavam que o que fizeram foi chegar à praça já com as silhuetas produzidas, segundo, chegaram com os rolos de papel que cortariam para produzir as silhuetas e demarcaram o espaço como pontos, no interior dos quais se produziriam as silhuetas. E algumas pessoas que já estavam avisadas, que já haviam colocado as silhuetas, se dispuseram a produzir mais silhuetas, cortando o papel e pondo seus corpos no chão. Imediatamente, começou a se somar gente. Daí vemos que as silhuetas são um modo de organização. Esta prática artística é um modo de organização. E as silhuetas são o resultado de um modo de organizar o protesto.
Comentário do público sobre o Siluetazo continuar sendo uma representação.
O Siluetazo não é uma representação. Para avaliar estas práticas, temos que sair do paradigma da representação. O Siluetazo é uma presença e é um modo de organização, que é diferente de uma representação.
Que quer uma ditadura? Destruir o vínculo social. A ascensão dos fascismos e dos nacionais-socialistas nos anos 1930 é exatamente um instrumento da burguesia europeia para paralisar o desenvolvimento extremo das formas de organização do movimento operário. Bom, isto sabemos, o que procura uma ditadura é romper o círculo social, fragmentar, dividir, individualizar e submeter as formas de cooperação social a uma estrutura piramidal, de mando vertical.
O que faz o Siluetazo em plena ditadura? Através de uma ferramenta, de uma técnica muito simples, restitui o vínculo social, porque, para produzir a silhueta, tem que ter comunicação entre corpos, tem que ter comunicação verbal, tem que ter comunicação política, tem que ter comunicação física, tem que ter comunicação simbólica.
O Siluetazo é uma técnica de restituição do vínculo social, o que não é uma representação, é uma produção em ato do vínculo social. É uma forma de organizar a cooperação, então não a representa, é produção de cooperação. E a silhueta não representa os desaparecidos, não é tanto uma representação dos desaparecidos, em parte é uma representação, mas torna-se mais complexa, porque o que tem aí não é uma silhueta de um desaparecido, é uma silhueta de um sujeito que existe ou uma silhueta de um sujeito que, se não existe, se inventa. Não é propriamente a silhueta de alguém que foi desaparecido, estabelece uma comunicação entre quem não está e os que estamos presentes. Então, para interpretar estas práticas, tem que sair deste paradigma. Não é uma representação da multidão. Não é uma representação da cooperação, é uma “realização em ato”, literalmente a cooperação. É uma produção de multidão em ação, mas não é uma representação.
Eu estou pondo a ênfase não tanto no objeto que vem ao final porque o objeto é um elemento que desencadeia um processo que é só uma parte de um tipo de engrenagem, de um tipo de maquinário. No Siluetazo, o que importa não é tanto o que representa, que função tem ou o que mostram as silhuetas, mas o fato de ser um dispositivo que tem outra complexidade.
É certo que até tem um elemento de representação, pode ser, mas isso é um elemento a mais, um componente a mais de um mecanismo mais complexo. O quê representa a colaboração que se dá entre você e eu na hora de produzir uma silhueta? Aí não há representação, há uma técnica de produção de um vínculo e o Siluetazo é o resultado disto. A chave aí é a reconstrução de vínculo que a ditadura quer romper. Porque, primeiro, a ditadura quer que eu desapareça, quer apagar o sinal da minha identidade; segundo, quer que o meu pai não fale que eu desapareci, que a família não o comente, que se saiba mas não se diga. E daí o que faz o Siluetazo? Restitui o vínculo, produz uma visibilidade que é contrária à invisibilização que a ditadura quer impor. Entretanto, essa visibilidade é o resultado de uma técnica, de uma técnica que organiza a restituição de um vínculo, que é um vínculo de comunicação, de solidariedade, que é um vínculo afetivo, simbólico — essa é a chave, creio.
Se há uma dimensão de representação, é uma parte a mais num maquinário mais complexo. Porque a proposta é sair de nossa fixação com o que opera, com o que faz e significa o objeto, e sobretudo pensar que tanto o objeto quanto sua dimensão de representação são como um componente a mais numa máquina que é mais complexa.
É definitivamente à técnica que temos de ir. O que deduz-se de dois textos históricos de Benjamin dos anos 1930 é que a chave é a técnica. Tem-se que esclarecer a técnica.
Pergunta do público sobre se o Siluetazo pode ser pensado por meio de uma dimensão teatral.
Sim e não. Sim, se estamos falando de uma dimensão teatral se sabemos ler um trânsito histórico no qual o teatro desborda os limites da representação para passar a orquestrar uma encenação onde não há uma representação propriamente, mas uma ação.
Parece-me que os idealizadores do Siluetazo estavam num primeiro momento fortemente influenciados pela Pedagogia do oprimido de Paulo Freire e supostamente pelas formas de teatro que estão vinculadas ao Teatro do Oprimido, no qual justamente não há o teatro como representação, nem uma dissolução do teatro na vida. É a introdução de um elemento de estranhamento na vida através de uma encenação, de um exercício corporal. Isso é o Siluetazo: não é nem uma representação teatral, nem uma dissolução de algo na vida de maneira que não se diferencia da “vida cotidiana”. É o corpo orquestrando uma encenação que introduz no cotidiano um estranhamento. É a técnica de estranhamento brechtiano no interior do cotidiano. Isso é o Siluetazo. Não é uma diferença entre quem olha e a cena, é um solapamento entre quem assiste e a cena. É uma veladura.
O Siluetazo literalmente introduz um estranhamento: a prova são as fotos dos guardas que não sabem o que fazer. Uma manifestação responde à lógica da manifestação e da repressão; o Siluetazo num primeiro momento desestrutura este cotidiano da manifestação. A polícia não sabe o que fazer porque introduziu-se um estranhamento. Aí vamos de novo a algo a que me referia, um desbordamento dos limites das instituições estéticas da modernidade, mas levando consigo as ferramentas que foram características de uma fase experimental ou de laboratório da vanguarda. É levar à cena da “vida cotidiana” as técnicas de estranhamento brechtiano, apagando a cena, apagando o limite entre o público e a cena. Produzindo um estranhamento no cotidiano.
Pergunta do público sobre os objetos produzidos pela Bauhaus.
O princípio vanguardista de dissolver a arte na vida nessas práticas que têm a ver com uma projeção racional ou técnica da prática, seja no Construtivismo ou na Bauhaus, por aí, que se traduzem em levar consigo as ferramentas de organização racional da produção estética para, desbordando o limite da instituição artística, passar a pensar a organização racional da vida, discorrem historicamente, na minha opinião, em dois eixos paralelos de intenções.
O eixo do desenho, dito de um modo bem superficial, introduzido sobretudo pela reconfiguração da ideologia do desenho que estabelece o argentino Tomas Maldonado na Europa, que basicamente consiste em vender este princípio à reorganização neocapitalista europeia depois da Segunda Guerra Mundial. Nesse eixo, o princípio vanguardista de organizar tecnicamente a vida a partir das ferramentas das vanguardas consiste literalmente em colocar a organização técnica da vida ao serviço de desenvolvimento do capital.
E tem o eixo de pensar a verificação dessas ferramentas experimentais no interior dos movimentos sociais.
Estas são duas tensões que historicamente se podem analisar e que chegam até o presente. Tem-se, por uma parte, a organização técnica da vida nas mãos do capital e, por outra parte, a organização autônoma da vida nas mãos dos movimentos sociais. Em ambos os casos, pode-se detectar como estes dois princípios fazem uso das ferramentas experimentais da vanguarda.
Para mim, a fase histórica atual consiste literalmente em reverter o que historicamente fez a ideologia do desenho. Devolver de novo aos princípios da autonomia social o que foi historicamente a colocação dessas ferramentas à valorização capitalista.
Pergunta do público sobre Tucuman Arde e a reclamação sobre o direito autoral das imagens que circulam sobre isso.
É um bom exemplo. Neste caso, vemos que não se pode ser tão rígido na hora de pensar o dentro e o fora na instituição. Poderia parecer que eu preferisse postular aqui o fato de que essas práticas não fossem institucionalizadas, quando na realidade, no caso de Tucuman Arde, se demonstra que a multiplicação de uma prática passa também por disputar no interior das instituições artísticas a forma como se relatam ou se historizam essas práticas. Se podemos falar disto, é porque precisamente Tucuman Arde circulou na instituição artística, o que facilitou justamente sua multiplicação, seu conhecimento, e isso abre um campo para poder disputar essa herança, como a atualizamos ou a reativamos agora. Porque Tucuman Arde oscilou justamente entre as recuperações historiográficas mais banais, mas também as reativações mais interessantes, isso somente porque justamente circulou nos âmbitos museográficos.
Mais do que ter medo dessas questões, há de se pensar essas dinâmicas, há de se disputá-las. A figura do Che para que serve, por exemplo? Para reativar revoluções ou para vender camisetas? Para as duas coisas, uma coisa não invalida a outra. A chave sempre é como essas operações “no interior da instituição” se relacionam com o fora. Cada caso é distinto. São territórios, dinâmicas em disputa.
Uma das caraterísticas dos movimentos do ciclo atual de conflitos, desde o zapatismo em diante, ou melhor, desde o ciclo de revoltas democráticas de 2011 em diante, desde Tahrir até Occupy, passando pelo 15M, pelos movimentos estudantis no Chile, na Colômbia, etc., é sua potência expressiva. A chave dessa expressividade é o desclassamento, ou seja, quando os filhos da classe média ampliada que tiveram acesso e puderam aprender ferramentas de produção simbólicas, expressivas, potentes e complexas, decidiram que não iriam mais pô-las a serviço de nenhuma empresa, mas iriam usá-las para outra coisa. Isso é o que explica a potência expressiva do 2011. A proliferação de cartazes, vídeos, lemas, slogans, formas inventivas de ocupar a praça, de desestruturar a confrontação com a polícia, tudo isso que depois os teóricos e críticos de arte reduzem a vamos “analisar o cartazes de Occupy”. Na realidade, o importante não é o cartaz, mas justamente a proliferação de formas expressivas e a chave aí é que alguém, em lugar de vender o que sabe à empresa, passa a pôr esse conhecimento a serviço dos movimentos sociais.
E isso ocorre porque o capital nas últimas décadas rompeu uma multidão de pactos habituais com a classe média e porque cada vez mais camadas da população mundial enxergam a verdadeira cara do neoliberalismo. E por outra série de motivos, do mais banal aos mais complexos.
Pergunta do público sobre o projeto Las Agencias.
Las agencias são fruto da confluência de um duplo processo, no qual, por um lado, pessoas, setores e grupos de trabalho que vêm tradicionalmente de dentro do trabalho na instituição artística e têm interesse em ampliar as ferramentas clássicas da crítica institucional começam a pensar a abertura do trabalho no interior dessas instituições articuladas com os movimentos sociais. Ou seja, começam a pensar desde a crítica institucional o desbordamento para fora da instituição.
E, por outro lado, há uma confluência disso com pessoas, sujeitos e coletivos que, desde o trabalho tradicional dos movimentos sociais começam a pensar a articulação, o agenciamento, com instituições de uma maneira que os levam a pensar de outra forma o conceito de autonomia dos movimentos.
Eu creio que haja setores do movimento que pretendem realizar um agenciamento, uma articulação, uma experimentação, uma simbiose, com áreas também experimentais da instituição, e setores da instituição que querem pensar a articulação com os movimentos sociais. Esses dois eixos confluem num contexto muito singular que é a eclosão do movimento global, ou movimento contra a globalização neoliberal, que estava em Seattle, que tem seu Seattle europeu em Praga, no ano 2000. E que também se encontra em 2001 em Barcelona, quando se convoca a reunião do Banco Mundial e do FMI. Esta circunstância se dá na medida em que o Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, o MACBA, era uma instituição que particularmente já vinha nesse trajeto via Fundação Tàpies, que já estava pensando em como experimentar com agentes sociais externos à instituição.
E Barcelona era uma cidade que tinha tido uma participação muito marcada no Seattle europeu, que foi Praga no ano 2000. E havia já de fato uma convocatória para fazer um primeiro experimento que foram as jornadas “Da ação direta como uma das Belas Artes”, organizadas originariamente pelo coletivo La fiambrera. Então, já existia a ideia de fazer esse primeiro experimento, um primeiro protótipo de articulação entre a área de abertura dos eixos dos movimentos em direção à instituição cultural, um em relação ao outro, reciprocamente. Daí, surge a possibilidade de fazer um projeto de trabalho que funciona na intersecção entre a instituição e os movimentos. Que não fosse nem os movimentos aproveitando-se da instituição tirando-lhes dinheiro, nem a instituição cooptando os movimentos para renovar ou para reproduzir seu programa cultural. Las Agencias saiu-se relativamente bem, mais ou menos bem…
Pergunta sobre o impacto e as transformações ocasionadas por Las Agencias.
Las agencias nunca foi exposta; são mais desconhecidas que qualquer outra coisa, não estão catalogadas, não há nada. Poderíamos analisar os seus variados níveis de impacto — a nível institucional teríamos que perguntar aos museus, à instituição artística, aos curadores ou gestores, sobre o que eles pensam. Por que não houve uma transformação mais radical da instituição artística na Espanha? Posso pensar que pelo ensino do sistema da arte, mas não é bobagem, é uma pergunta pertinente. Por que há uma maré pela saúde pública, pela educação pública, pelos afetados da hipoteca, e não há uma maré pelas condições da cultura? Porque a cultura acaba tropeçando em si mesma e não gera nenhum dispositivo que permita sua composição com outros. Essas são modificações que efetivamente não foram produzidas num sentido visível. Mas bem, há interpelações para fazer diretamente aos agentes culturais.
Mas em outro sentido menos evidente, não por Las agencias evidentemente, há perguntas que há de se fazer sobre por que os movimentos contra a crise na Espanha, particularmente sendo o impacto da crise o mesmo que na Grécia, ou Portugal ou Itália ou Irlanda, por que aqui particularmente as configurações contra a crise são de uma expressiva complexidade, de uma riqueza política, de uma complexidade também no agenciamento entre instituição e movimentos, de uma complexidade também na hora de colocar-se como estrutura de movimentos que simultaneamente são destituintes do regime, instituintes de uma institucionalidade própria do movimento, e constituinte no que claramente o movimento contra o que a crise está propondo, que é o rebocamento da constituição de 78, e gerar um processo constitucional novo, essa riqueza que é simultaneamente expressiva, política, etc.
O movimento da Espanha, não pode ser por casualidade, não se está dando uma resposta à crise com tanta complexidade igualmente na Grécia, na Itália, ou em Portugal. Digo que não é por Las agencias, claro, mas algo vem passando aqui nos 15, 20, últimos anos que faz que a complexidade contra a crise seja mais esperançosa, mais contundente, mais rica, mais proteica em muito níveis do que está sendo em outros lugares.
Por exemplo, com que relativa facilidade na Espanha agora se aceita em termos de sentido comum na opinião pública o movimento da desobediência civil, ou a ação direta? Qual são os eixos que restituem a política do movimento social em plena penúria da hegemonia neoliberal na Espanha, final dos oitenta, princípio dos noventa? Por uma parte é a ocupação, por outra parte é a insubmissão antimilitarista, e conectando ambas, o feminino autônomo. Quais são as ferramentas pelas quais se exercem esses eixos de recomposição de movimentos? A desobediência civil e a ação direta. Então, não é tão estranho se levamos aqui 25 anos de trabalho político em torno à desobediência civil e à ação direta, não é tão estranho que haja um sentido comum que aceite com relativa naturalidade os escraches da PAH, ou as ocupações pela moradia, ou a ocupação do espaço público pelos acampamentos. Porque, além do evidente, há algo que vai se conformando por baixo em termos de sentido comum; há algo neste sentido comum da sensibilidade compartilhada que resulta que aqui essas coisas passem assim.
Outra vez, não digo que isso tem a ver com Las agencias ou com o 15M, mas que há uma experimentação que se compõe com outras experimentações que dá lugar a coisas que agora mesmo não se pode associar com literalidade porém que faz com que as coisas aconteçam aqui com um grau de complexidade diferente.
O público comenta criticamente o papel dos museus em relação a seus discursos.
É que as instituições culturais, em algum ponto, são irrecuperáveis…
O conceito de significante vazio ou aberto (Chantal Mouffe e Laclau) ajuda a pensar esse processo. Explico com minhas palavras. Os movimentos do novo ciclo se desenvolvem não tanto por somatória de identidades que se mantêm fixas mas por um tipo de articulação que faz com que, na composição, essas identidades se modifiquem simultaneamente. É aquilo que alguém lança e outro sujeito pode adotar justamente significando-o.
É um significante aberto o conceito de “democracia” lançado na Praça Tahrir, no Egito, reapropriado pelo 15M e pelo movimento Occupy. O conceito de “democracia” não quer dizer a mesma coisa nos três casos, mas também não é um significante tão fechado para que se mostre solidariedade somente pelo que os egípcios postulam. Eles lançam algo de que você se reapropria, resignifica, catapulta, ou seja, se resignifica o que se produz. É justamente um encadeamento, uma sequência encadeada num processo de movimento.
Qual é a chave para que se desencadeie um processo de movimento complexo a partir dos protestos dos estudantes no Chile? Quando os estudantes no Chile dizem “gratuidade”, estão dizendo algo que eu, que sou caminhoneiro, que sou motorista de ônibus, ou que sou funcionário da saúde pública, possa abrir-me ao movimento de estudantes de um modo diferente da mera solidariedade. Quando dizem “gratuidade”, abre-me a porta para que eu pense algo diferente de “me solidarizo com os estudantes que têm um problema, o problema das mensalidades ou o problema do endividamento para poder realizar estudos superiores”. Abre-me a porta para que eu possa pensar: o que esses tipos estão dizendo é a chave para pensar o processo de sujeição social do neoliberalismo no Chile através do endividamento pelo encarecimento de algo que deve ser o sentido comum da sociedade: a saúde, a educação, o transporte público. Então “gratuidade” dita pelos estudantes é o mesmo, e ao mesmo tempo diferente, da “gratuidade” dita por mim que sou caminheiro, da “gratuidade” dita por mim que sou funcionário da saúde pública. Aí temos uma imagem clara. O significante aberto é a chave que permite a articulação, o desencadeamento de um movimento por articulação. Democracia é isso.
Uma companheira do Podemos explicou isso muito bem em Madrid. Ela disse que a chave do êxito colocado pelas enfermeiras em Madrid desde a primeira ocupação que elas fizeram num ambulatório deixa bem claro que não estavam ocupando por um problema singular delas. Evidentemente que estavam reivindicando que não as despedissem, mas que a origem daquela demissão como enfermeiras era uma política de cortes que estava desabastecendo a saúde pública e que estava definitivamente dirigida a sua privatização, o que por sua vez afetava a saúde da sociedade como um todo.
O que elas estão fazendo é lançar um significante aberto de maneira que possamos, sem ter um trabalho na saúde publica, solidarizar-nos pela enfermeira mas também lutar pela saúde pública porque isso nos afeta a partir do nosso lugar. Por que luto pela saúde pública? Por que tenho dois filhos que são afetados pela privatização da saúde. Eu luto pelos meus filhos e articuladamente luto pelo posto de trabalho da enfermeira que luta por seu posto de trabalho e articuladamente para que meus filhos tenham saúde pública.
Isso o sistema da cultura não sabe fazer, se manifesta pelos impostos, para que se lhes deem mais lugares para se fazer arte, por coisas que não são significantes abertos, não permitem a articulação com outros, não permitem o encadeamento, e como não permitem o encadeamento, nos veem como sujeitos que reclamamos o nosso. Quando nos manifestamos, quando temos um cartaz bem grande que diz: “Que tem para mim?” Ao invés de como os demais se manifestam com um cartaz bem grande com: “Que tem para todos? Que tem para o comum?”
Público pergunta sobre a greve dos controladores aéreos.
Há uma diferença entre os controladores aéreos dizendo na semana santa “queremos mais salário” e os caras que carregam as malas, que dizem “não posso mais porque estou arrebentado”. Quando reclamo por minha mala, me queixando que estão atrasando para entregá-la e vejo quando sai uma pessoa com olheiras bem grandes e três dias sem dormir, que trabalha por um salário de 300 euros para levar as malas de 25.000 turistas, acabo dando-me conta que o que está me afetando nestes serviços tem a ver com a degradação das condições de trabalho. Daí há a possibilidade de compor, mas se a questão é colocada como “Que tem para mim?”, ninguém vai te fazer caso.
O que houve no ciclo atual é uma composição de experimentações. Às vezes é interessante pensar a relação entre os elementos da ordem de coisas que estamos discutindo não tanto por sua relação literal, mas por sua reverberação. Estamos falando de coisas que não têm uma tradução evolutiva, linear ou consecutiva — tal artista influi a outro ou tal movimento influi outro — estamos falando de experimentações que são complexas, que são truncadas, que parecem que não têm saída, que não têm derivações, que sucedem uma aqui e outra ali. É mais interessante pô-las juntas para pensarmos a ressonância entre umas e outras.
O público pergunta sobre a repercussão de Las Agencias para os museus.
Podemos pensar que repercussão tem Las agencias nos museus, mas também podemos perguntar-nos que relação há entre Las agencias, os escraches da PAH, a ocupação das praças no 15M, o triunfo da maré da saúde em Madrid e os experimentos eleitorais que surgem dos movimentos para fazer uma tomada do poder político? Se pusermos estes elementos juntos e vermos suas conexões, o que daí aparece é mais interessante. Pensar no que umas experiências reverberam em outras, e as conexões que não são literais nem consecutivas, nem claramente evolutivas mas têm ali algo que ressoa, nos permitindo compor um diagrama de situação que é mais complexo, que é mais rico. Porque definitivamente a influência ou não que uma prática tem no museu é de algum modo secundariamente importante. Na realidade, o que isso importa?
O público justifica da importância de pensar o museu como um espaço aberto.
De qualquer forma há de se pensar na redundância, de museu a museu; para talvez pensar desde outro lugar, desde fora, e dispor diagramaticamente todos estes fenômenos para voltar a pensar o museu. Tanto o significante aberto através do triunfo das marés quanto o conceito de democracia no século de XXI nos fazem entender como se reformulou o museu. O problema com o sistema de arte é que é tão redundante, sempre se pensa desde o interior de si mesmo, inclusive a crítica institucional é sempre tão interna ao próprio sistema que redunda, e é por isso que é facilmente cooptável, porque é muito redundante, muito auto-referencial, é melhor pensar as cosas a partir de elementos externos.
Porque, se em realidade alguém pensa no conceito de “democracia” no século XXI, é remetido ao uso deste pelos zapatistas em 1994. O conceito de democracia é um dos elementos de sentido comum do ciclo de conflitos desde os anos noventa até agora. Quando um enxerga as coisas através de outras, pensa em como atuar dentro mas articulando desde fora.
O zapatismo executou as melhores práticas de desvio dos últimos 30 anos; quando na teoria ou na história da arte nos ensinam o desvio situacionista e tal, nem pensem nisso, pensem nos zapatistas, pois eles são um maquinário de desvio, de símbolos e representações de conflito.
O “passamontanhas” é uma recuperação de um signo de uma fase anterior do movimento, que é a luta armada. Que ele significa na tradição da luta armada na América Latina? Ocultamento, clandestinidade e ameaça. E o que o “passamontanhas” significa no zapatismo? Abertura e identidade. Os zapatistas dizem: para que nos olhassem, tapamos a cara, éramos os que fazíamos a comida, os que limpávamos a casa e os sapatos, e não nos olhavam a cara. Para que nos olhassem, tivemos que pô-lo. Então, não é um ocultamento, é um desvelamento.
Quando o governo mexicano quis revelar a identidade de Marcos pensando em fazer merda, convocar uma conferência de imprensa, fazer a publicitação mundial da identidade do subcomandante Marcos, ele se adiantou publicamente e disse “não, eu mesmo vou fazê-lo”, e fez aquele discurso tão bonito, que dizia “Marcos é uma monja da liberação da América Latina, é uma mulher violentada no metrô de Paris, Marcos é um homossexual reprimido em Londres, Marcos é, Marcos é, Marcos é…” Então não é um ocultamento, mas uma visibilizacão. Não é a conformação de uma identidade fechada mas a abertura à composição com a identidade de outros. Que é o que tem aí? A apropriação de um signo que reivindica a memória de uma identidade política mas abrindo-a. Esses são exercícios chaves de desvios no zapatismo.
Por isso é importante a discussão da arte como produção de modos de organização. Com esses exemplos, nos damos conta de que não é uma digressão ociosa. Justamente trata-se de produzir modos de organização que sejam multiplicáveis, articuláveis, apropriáveis por outros.
Se o que está sendo colocado em funcionamento é uma técnica de manifestação ou uma hipótese política que é majoritariamente minoritária, não vale, não serve, por muito em que se empenhe em ter razão. A Chave da ação na qual 20 pessoas invadem um supermercado é que se outras 100, 200, 500, 1000 pessoas quiserem fazê-lo, também podem. Isso é o que dá medo, está se produzindo uma intervenção que é um gesto expressivo, que como técnica é um modo de organização. Essa tática é a sua chave e seu perigo porque essa ação é multiplicável, pode ser desdobrada e articulada com outros. Porque faz com que eu possa me solidarizar em termos de articulação política com essa intervenção feita por outros.
Mas se outras manifestações não o são, não importa discutir a legitimidade ou não da violência; se não multiplica, se é minoritária, se nos faz projetar uma discussão que não nos convém, se efetivamente faz com que respondamos a uma armadilha porque recoloca o modelo poder x contrapoder nos termos que o regime quer, se não é apropriável por outros, se dispersa ao invés de concentrar, daí não sei o que estamos discutindo, não é uma questão de dar ou não razão ao regime com respeito ao que eles querem que façamos. É uma questão de discutir internamente quais são as táticas e as técnicas que nos fazem mais fortes, que nos fazem mais comuns e que são mais comunicáveis.
1 A palestra original pode a ser assistida em
https://www.youtube.com/watch?v=hDMGikv2BYU
2 Usa a expressão tomando el rábano por las hojas.
Este texto foi transcrito e traduzido por Milla Jung com a permissão do autor como encarte para a tese Arte Ocupação, práticas artísticas e a invenção de modos de organização.
A arte como produção de modos de organização
Apresentação de Marcelo Expósito no Museu de Arte Contemporânea de Castilla y León, MUSAC, em 2014.
Basicamente, a inquietude é...
Como podemos, de uma maneira muito decidida, sair de um enfoque sobre a arte, a crítica, a historiografia da arte, que rompa com a tradição objetocêntrica ou centrada no objeto? Como, de verdade, podemos começar a falar de práticas artísticas sem nos preocupar em absoluto pelos objetos, pelas coisas materiais que se produzem ou, em qualquer caso, tratar os objetos ou essas coisas materiais, os objetos que se produzem, como condição para pensar a prática da arte de uma maneira diferente, que eu proponho que seja, e como diz o título da conversa de hoje, como produção de modos de organização?
Talvez pareça uma ideia meio visionária, vanguardista, mas na realidade, para sustentá-la, basta nos remetermos a dois textos de Walter Benjamin dos anos 1930 que, como já podem supor, são: “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” e “O autor como produtor”. Um do ano 1934, e o outro de 1936.
A estes dois textos muito conhecidos de Benjamin, talvez não se tenha prestado tanta atenção no âmbito da Filosofia como se presta atenção habitualmente aos seus textos aparentemente centrais.
O texto “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” é um texto evidentemente muito usado na História e na crítica de arte, mas seguramente é um texto no qual se prestou atenção com más interpretações em sua leitura.
No meu modo de ver, os títulos destes dois textos estão equivocados. “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” parece que fala da obra de arte, “O autor como produtor” parece que fala do autor.
Na realidade, o texto sobre a obra de arte não fala tanto da obra, mas da produção do espectador, e o que propõe é descentralizar o conceito de obra para acabar falando como os dispositivos artísticos produzem um determinado tipo de subjetividade espectatorial. Enquanto “O autor como produtor”, que parece que fala sobre autoria, efetivamente, o que propõe é descentralizar a figura do autor para falar do modo de produção da prática literária, neste caso, estrito ao que o texto se refere. Ou da produção cultural ou da prática artística, se quisermos, e de modo muito mais geral, como criação/invenção de novos modos de produção.
Eu proporia entender esta questão da organização dos modos de produção de uma forma também mais ampla para pensar os modos de organização, isto é, a produção como organização ou a organização da produção.
O equívoco dos títulos destes dois textos fundamentais decorre do fato de Benjamin propor em relação a estas figuras centrais da modernidade, a obra e o autor, justamente descentralizá-las para colocá-las à margem ou condicioná-las a estas outras questões que acabo de mencionar. Por um lado, no caso de “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, a obra é pensada como um dispositivo de produção de subjetividade ou de politização através da subjetivação espectatorial no interior de um dispositivo artístico. E no caso de “O autor como produtor”, o trabalho do autor é visto como invenção de modos de produção ou como invenção de modos de organizar a produção.
Certamente, o que Benjamin coloca em alguns momentos de modo um tanto especulativo ou que parece que é um tanto especulativo está baseado fundamentalmente nas experiências artísticas, teatrais, cinematográficas materialistas, soviéticas, comunistas, nos anos 1920 e 30. Fundamentalmente, o modelo ao que Benjamin se refere e que, de fato, cita literalmente em “O autor como produtor” é o modelo do trânsito das artes construtivistas – das artes plásticas, do teatro construtivista – às práticas produtivistas na União Soviética entre os anos 1920 e 30.
O trânsito do construtivismo ao produtivismo não é muito conhecido porque de fato é uma das áreas mais escuras da gigantesca constelação das vanguardas artísticas, entre os anos 1910 e os anos 30, basicamente na Europa do entre-guerras. Os motivos desse escurecimento não são muito estranhos, pois iluminar essas práticas produtivistas, como vem sucedendo, sobretudo, nas últimas duas décadas, significaria colocar de cabeça para baixo praticamente todo o conhecimento que se produziu ao redor da história das vanguardas durante o século passado.
A hipótese produtivista, de alguma maneira, é bem simples: trata-se de passar da fase experimental, de laboratório, especulativa das vanguardas, a literalmente extravasar a estrutura da instituição artística, fazer isso sem abandonar as hipóteses, as ferramentas, os protótipos colocados em funcionamento ou inventados justamente pelas vanguardas nessa fase especulativa, nessa fase de laboratório. Não abandonar, porém extravasar o âmbito da instituição artística, colocando-o a serviço de outra coisa. Que é essa outra coisa? É a produção social, posta a serviço de organizar a cooperação social.
No caso das vanguardas contextualizadas no âmbito geográfico da União Soviética, essa produção social consiste, exatamente, na construção do socialismo, mas não podemos confundir a hipótese do extravasamento das vanguardas com a organização da produção social que se dá no âmbito geopolítico da União Soviética. Por exemplo, talvez de algum modo seja isto o que esteja por detrás do que impulsiona definitivamente a invenção da fotomontagem no dadaísmo político na Alemanha entre os anos 1920 e 30.
De uma maneira mais geral, podemos detectar indícios, experiências, justamente deste extravasamento, repito, de sua fase de laboratório, para além dos limites da instituição artística em direção a uma prática artística que consiste em inventar modos de organizar a produção e a cooperação social em muitos outros lugares.
A ideia, a única ideia, que eu gostaria de submeter a esta conversa, mostrando quatro ou cinco exemplos, é: como podemos deslocar, de uma maneira muito radical, seguindo a síntese teórica que elabora Walter Benjamin nos anos 1930, estas duas figuras centrais na teoria e na prática artística da modernidade, que são o autor e sua obra, para considerá-las como uma prática de arte fora deste peso tão forte que tem a tradição centrada no objeto?
E pensar o título da conversa de hoje, “A arte como invenção e como produção de modos de organização”, como forma de organizar a cooperação. Talvez a colocação desta ideia nos possibilite pensar de que maneira se pode entender o aparente paradoxo ao qual Elena se referiu quando fez minha apresentação: como pode alguém apresentar-se como artista quando em realidade, dentro de sua prática, coloca em primeiro plano tarefas como a docência, o ativismo social, a tradução, a edição de materiais ou uma situação como a de hoje, como se pode considerar uma situação como a que aqui estamos organizando entre nós? Pode-se considerá-la como parte de uma prática artística? Se pensamos justamente a prática da arte como a invenção de modos de organização, de modos de organizar a produção e a cooperação social... Aí temos uma chave.
Não estamos produzindo um objeto, não estamos produzindo uma coisa tangível, estamos produzindo tangíveis e intangíveis. Um tangível que é este dispositivo para poder cooperar, para poder produzir conhecimento cooperativamente. E estamos produzindo um intangível, que é o próprio fato de cooperar produzindo conhecimento, o conhecimento que se produz cooperativamente.
O público pergunta sobre qual seria o papel do artista diante deste novo paradigma.
Qual é o papel do artista, nesse caso, na forma de organização? O artista é alguém que na hora de produzir a cooperação social contribui ou disponibiliza ferramentas que são tradicionalmente específicas de sua prática. Ele disponibiliza aquilo que pertence à bagagem do que tradicionalmente foi característico da história da arte ou da história das vanguardas, por exemplo.
A cooperação social, atualmente, significa exatamente disponibilizar ferramentas justamente para que esta cooperação seja potencializada de maneira autônoma, e não condicionada aos mecanismos de valoração que são característicos do capitalismo. O que o artista faz é disponibilizar ferramentas, muitas destas já compartilhadas com outras práticas.
Comentário do público sobre algum caso específico, não é possível entender o caso explicitado em questão.
Mas não se pode discutir a priori. Há que elucidar as perguntas sobre práticas específicas. É uma tendência muito habitual na teoria estética, na teoria da crítica de arte, fazer uma projeção quase permanente em nível abstrato, eu acho que temos que fazer um trabalho permanente de ida e volta entre a abstração e a concreção de práticas materiais concretas na hora de nos perguntar como se faz esta disponibilização das ferramentas artísticas em composição com outras. Mas não ao nível abstrato. O que, sim, é certo, e que podemos aprender das vanguardas do período ao qual estou me referindo, para que seja eficaz esta disponibilização destas ferramentas artísticas com outras ferramentas, para que esta composição seja eficaz, faz falta que não sejam legíveis a priori como artísticas ou que não estejam pré-codificadas como ferramentas artísticas. O que justamente tem a ver com a condição de sua eficácia tem a ver com que não sejam legíveis como artísticas.
Por exemplo, os pavilhões de propaganda desenhados por El Lissitzky para os governos da União Soviética na década dos anos 1930, entre os anos 1920 e 30, não são legíveis como obras artísticas. Porém, ele dizia que os pavilhões eram a obra mais importante de toda sua trajetória, mas não há nenhuma obra de arte, a obra também não é o pavilhão. A obra pode ser todo o conjunto do dispositivo, o trajeto da prática de cooperação entre sujeitos que provêm de determinadas disciplinas, a inter-relação entre o trabalho autônomo cooperativo de especialistas desta disciplina, a articulação disso com as linhas e as diretrizes políticas que emanam de um governo socialista, a interação disso com um projeto de construção do socialismo numa sociedade delimitada no tempo e no espaço, a inserção destes pavilhões em dispositivos de comunicação mais amplos – como são as exposições universais, por exemplo, a subjetivação do público no interior destes pavilhões. Tudo em seu conjunto é a obra, e aí não há obra de arte, não há nem sequer um autor.
Mas o fato de que El Lissitzky tenha dito que era a obra mais importante de sua vida, creio que de alguma maneira é um indício que temos que levar a sério, esses pavilhões como algo que sintetiza o conjunto de sua prática como desenhista, editor, artista, arquiteto. E que, finalmente, se disponibiliza num dispositivo que não é legível como uma obra de arte e no qual, justamente, sua eficácia como dispositivo de comunicação é melhor quanto menos seja legível como obra de arte. É importante vê-lo em modelos específicos.
Ainda vou fazer uma citação de “O autor como produtor”, que está no caderninho de Gerald Raunig que acabo de traduzir. Benjamin dizia:
A prática da arte, a prática do autor como produtor, nunca será somente o trabalho sobre os produtos, mas também, e ao mesmo tempo, o trabalho nos meios de produção, em outras palavras, seus produtos tem que possuir junto a, e antes que seu caráter de obra, uma função organizadora.
[BENJAMIN, 1936]
Quer dizer que podemos pensar que a prática da arte, segundo Benjamin, tem que começar a ser algo mais, algo além dos produtos, podemos inclusive chegar a dizer que o produto de uma prática, em realidade, é não tanto o objeto, mas sua função organizadora, sua função de invenção de modos de organizar a produção.
Neste momento, Expósito apresenta os três exemplos, os movimentos ACT UP, Gran Fury e El Siluetazo.
A imagem do primeiro exemplo que eu queria trazer para a discussão começa a circular no final dos anos 1980 nas ruas de Nova York. É uma imagem de um triângulo equilátero de cor rosa que repousa num dos seus lados e aponta para cima um de seus vértices, sublinhado abaixo por duas palavras, “silêncio” e “morte”, que estão conectados por um signo de “igual”.
Este signo não era imediatamente legível para todos os transeuntes da cidade de Nova York, mas completamente legível para os membros da comunidade gay e lesbiana da cidade, porque o triângulo equilátero se utilizava para sinalizar os homossexuais nos campos de concentração e de extermínio nazi. Entretanto, o triângulo que se utilizava para marcar os homossexuais nos campos de concentração era um triângulo invertido, que apontava para baixo; este signo, portanto, o que produz é uma reversão, pois o triângulo agora aponta para cima.
O efeito semântico é imediato, um triângulo que aponta para baixo é um signo negativo, e um triângulo que aponta para cima é um signo positivo. A reversão do triângulo que aqui neste desenho se produz responde aos mesmos princípios políticos que puseram em prática os movimentos baseados numa política de identidade, que nos anos 1980, como sabem, tinham como uma de suas intervenções mais chamativas o fato de se apropriarem de sinalizações que habitualmente são estigmatizadoras dos comportamentos que a norma, a heteronorma, considera desviados – veado, puta, negro, sapatona – para apropriá-los como signos de identidade, signos de orgulho, como uma identidade em positivo.
Este triângulo faz exatamente isto, sinaliza os homossexuais na véspera de serem exterminados ao serem capturados pelo dispositivo exterminador. Ao ser revertido, se mostra como um signo positivo, que aponta para cima e não para baixo.
O sublinhado das duas palavras, “silêncio” = “morte”, era legível naquele momento no qual o signo começou a circular pelas ruas de Nova York pelos membros daquela comunidade que estavam começando a ser afetados por uma pandemia, uma doença sobre a qual naquele momento se tinha pouca informação, a AIDS. Silêncio = morte se referia literalmente a que o silêncio em torno da doença era equivalente à morte massiva de grupos inteiros da população.
Este signo, o que estava literalmente chamando era a necessidade de falar, de atuar, de tornar visível o que se estava vivendo como um drama, um trauma, e como uma enfermidade e mortes de massa em círculos reduzidos.
O triângulo equilátero se converteu muito rápido no logotipo principal de um movimento e rapidamente se converteu no Movimento Internacional ACT UP, que num primeiro momento consistia na organização de espaços de apoio mútuo onde as personas afetadas pelo HIV podiam compartilhar sua experiência da doença, e este compartilhamento era a plataforma a partir da qual se projetava literalmente uma política de atuação pública que não somente já permitia que determinado sujeito se representasse publicamente, mas que, além disso, lhes permitia atuar politicamente para neutralizar os efeitos sociais negativos espantosos da pandemia de uma maneira distinta da sua representação como vítimas.
Na realidade, essa duplicidade de uma organização social, que é ao mesmo tempo uma rede de apoio mútuo e se converte numa plataforma de denúncia pública e de auto-organização da denúncia, é a matriz a partir da qual se organizam muitos movimentos característicos do atual ciclo de conflitos, desde os finais dos anos 1980 ao princípio dos 1990 e adiante.
Se pensamos na PAH, a Plataforma dos Afetados pela Hipoteca, na Espanha é exatamente isso, um espaço de apoio mútuo onde pessoas que num primeiro momento vivem de uma maneira angustiada, que vivem se auto vitimizando, numa situação como uma crise social, este espaço de apoio mútuo se converte imediatamente em uma estrutura de organização que é de denúncia. Justamente, as pessoas que se veem afetadas, já não como vítimas, mas como pessoas que sendo afetadas são justamente especialistas capazes de denunciar para fora quais são as condições políticas em que acreditam que se deve enfrentar esta crise social. Também é uma plataforma imediata de organizar uma maneira coletiva de confrontar esta crise.
Digamos que ACT UP é um dos casos principais, um dos primeiros, que justamente se pode pensar como muitos movimentos do atual ciclo de protestos, que constitui uma matriz biopolítica, porque, no caso de ACT UP, o vemos muito claro, no caso da PAH, o que vemos é como uma crise social faz sintoma nos corpos como o lugar onde simultaneamente o poder se exerce e o contrapoder se contrapõe ao exercício de um poder externo.
No caso da AIDS, são bem claras as negligências ou os interesses que são característicos do ciclo capitalista neoliberal, que definitivamente é o que faz com que a epidemia do HIV se estenda e literalmente produza a morte de camadas massivas da população civil. Aí vemos claramente como o poder controla os lugares onde a vida se produz e se reproduz e onde a morte também se exerce. E vemos no caso de ACT UP como atuar a partir dos corpos é literalmente pensar os corpos como um lugar a partir do qual um contrapoder biopolítico também se opõe a um biopoder que se exerce de fora.
No caso da PAH, também podemos entendê-lo perfeitamente, como os outros movimentos do ciclo atual, os corpos interiorizam mediante os sintomas de ansiedade, de depressão, de neurose, aquilo que consideram como um fracasso próprio na hora de responder a exigências de promoção e triunfo social. E justamente o espaço de apoio mútuo que organiza o movimento é o lugar onde os corpos podem pensar que a ansiedade, a depressão, a neurose, inclusive a morte, é um efeito sobre o próprio corpo de algo que é um exercício de um poder externo, portanto é um biopoder. Um poder que afeta literalmente os lugares onde a vida é produzida.
Sempre foi assim, e podemos pensar, neste sentido, que a fábrica tradicionalmente não foi somente um dispositivo de produção material, mas de subjetivação, um lugar onde também se modelou a subjetividade da força de trabalho de uma maneira que a submetia aos interesses do capital.
Pensemos que os sindicatos são tradicionalmente um contrapoder em termos de biopoder, um sindicato é aquele lugar que não somente se articulam as reinvindicações de tipos materiais, melhores salários, melhores condições de vida para os trabalhadores, mas que estas reinvindicações afetam literalmente como os corpos buscam, não somente se organizar, mas também produzir e reproduzir suas condições de vida de outra maneira.
O interessante é que, num sentido tradicional, a fábrica e o sindicato são dois dispositivos contrapostos e diferenciados, nos quais o poder e o contrapoder se exercem como forças contrárias. No caso de ACT UP, o corpo toma literalmente a posição central e é onde o biopoder se exerce e uma biopolítica em termos de contrapoder também se exerce como um poder contrário, nele simultaneamente o poder e o contrapoder tomam forma.
Parece-me que o mais interessante é se pensamos nos movimentos do ciclo atual, nos quais o poder e o contrapoder tomam forma nos mesmos dispositivos, ao contrário da situação colocada na fábrica e no sindicato.
Este é um cartaz realizado por um dos coletivos mais conhecidos de artistas que trabalharam no seio do ACT UP no final dos anos 1980 e princípio dos 1990, que é o grupo Gran Fury. É um dos cartazes caraterísticos que o grupo realizou num tipo de relação semiautônoma com a organização de ACT UP. É interessante ler este cartaz de cima para baixo, uma mensagem que vai acumulando camadas de sentido seguindo o aumento do tamanho da tipografia. A primeira frase que começa o cartaz, “com 42.000 mortes”, nos situa na dimensão espantosa de 42.000 mortes. Se na pandemia da aids já houve 42.000 mortes, pensemos como essa cifra aumenta em eco, pensando também quais são as potenciais mortes pelos afetados pelo HIV e como também estas mortes afetam os companheiros e familiares dos afetados, etc.
A segunda camada de sentido, numa tipografia maior, diz que a arte não é suficiente. Prestem atenção que não diz que a arte não serve mais, ou que há de se abandonar a arte, mas que a arte não é suficiente. Na minha opinião, esta frase entra em diálogo com algumas posturas adotadas por certas tendências de radicalização artística que nos anos 1960 e 1970 fizeram com que muitos coletivos abandonassem a prática da arte para abraçar a prática política, ativista, por exemplo, no caso da América Latina, para abraçar as correntes de luta armada. Então o que o cartaz enuncia é que se a arte não é suficiente, a pergunta é, então, o que faz falta a arte ser, ou, o que deve somar-se à arte para que seja suficiente ou para começar a ter uma função que efetivamente possa diminuir a dimensão das 42.000 mortes que se enuncia na primeira frase?
A resposta nos dá o corpo central do cartaz, que é a parte de maior tipografia: adotar a ação direta coletiva para pôr fim na crise da aids. Ação direta + as ferramentas tradicionais que a arte herda da tradição das vanguardas, uma somatória proposta pelo Gran Fury que propõe-se como metodologia para efetivamente confrontar esta crise.
Habitualmente, o que se faz em qualquer exercício de teoria, de crítica e de historiografia de arte é trabalhar sobre as imagens que a prática artística produz. Mas de acordo com o enunciado que propus para a fala de hoje, o que devemos prestar atenção é a maneira que essas imagens servem para organizar, para produzir, um modo de organização.
Estas são imagens muito características de desobediência civil e de ação direta exercitas pelo ACT UP nos espaços públicos. Não importa exatamente que ação é: poderia ser, por exemplo, a interrupção da abertura de um curso judicial em qualquer corte ou audiência de algum edifício judicial importante da cidade de Nova York. Ou poderia ser a interrupção de entrada em qualquer congresso da indústria farmacêutica em qualquer cidade do mundo. O que importa é que são corpos que interrompem o uso habitual daquilo que na linguagem comum se chama de espaço público, mas que de fato não é um espaço público.
O que denominados tradicionalmente como espaço público são em realidade espaços sob o controle dos interesses da administração, do aparato do Estado e do capital. O espaço público do centro da cidade está perfeitamente regulado por esses interesses da administração e pelos interesses do capital: são escritórios, bancos, etc. O que faz uma ação como essa é interromper, cancelar esse uso, para dar-lhe um uso político distinto. Podemos dizer que o que uma ação como essa faz, não é tanto ocupar um espaço público, mas sim dotar de condição pública a um espaço que em realidade não é. Espaço que começa a ser público não por conta da interrupção que os corpos executam, mas porque interrompem o uso habitual desse espaço. Quando, por exemplo, ocupa-se uma praça em qualquer ação do 15M e a delegada de governo (Cristina) Cifuentes diz que se deve levantar esse acampamento porque o espaço é público e é de todos, na realidade, o que há nisso é uma disputa entre dois tipos de legitimidade, dois tipos de concessão do que é público. O que o 15M faz não é interromper o uso público deste espaço, é converter em público o que em realidade não o é — acampar é dotar de condição pública este espaço.
O que é interessante nessa imagem é ver como o signo de silêncio = morte circula inscrito nos corpos. Se historicamente o triângulo rosa apontando para baixo sinalizava os corpos em vias de desaparição, o triângulo rosa apontando para cima, ao contrário, está sinalizando corpos que estão empoderados, que exercem um contrapoder e reconstroem a condição pública do espaço, para chamar a atenção sobre a opinião pública sobre quais as condições em que se desenvolve a pandemia da aids. Vemos ainda que estes corpos estão entrelaçados, compondo uma figura coletiva. Parece-me importante prestar atenção a esta imagem justamente para poder entender essa ideia de que, se a imagem de ACT UP tem um valor artístico, não é porque podemos analisá-la como um objeto isolado, como um objeto autônomo, mas na medida em que serve para disparar a arte como um modo de organização.
Esta é uma manifestação em que vemos como o signo silêncio = morte se utiliza traduzido em diferentes idiomas. Então na obra há mais de uma matriz, que é declinável, desconstruível, transformável, dependendo de quem dela se aproprie. Isto é bem interessante porque o que é que dota de valor uma obra de arte na tradição da crítica de história? O ser singular, o ser irrepetível: se um quadro que eu pinte vale mais do que o que você pintar, é porque só eu posso fazê-lo. Qual é o valor de uma produção visual quando estamos falando de arte como ativismo artístico ou como a arte como modos de organização? Seu valor justamente é poder ser reapropriável e transformável por outros. Se eu produzo algo que só eu posso pôr em prática, ou só é atribuível a mim, então não tem nenhum valor para os demais. Aqui justamente é seu contrário, tem valor porque é reapropriável, modificável por outros. Até o ponto que podemos dizer, como dizia num texto referido ao coletivo Ne Pas Plier, que escreveu Brian Holmes há uns anos, “seu valor é seu uso”. Na medida em que pode ter um uso, aí está seu valor.
El Siluetazo
Bom, estamos no final do ano de 1983, em Buenos Aires, a última ditadura cívico-militar na Argentina começou em 1976 – nos últimos anos, na Argentina, chamam a ditadura de cívico-militar, como também deveríamos chamar o franquismo cívico-militar na Espanha, pois como lá dizem os movimentos pelos direitos humanos, a ditadura não foi somente militar, foi uma trama entre militares e civis. Como aqui também foi o Franquismo.
Voltando ao assunto, estamos nos últimos meses da ditadura cívico-militar, ano 1983, as mães da Praça de Maio vão organizar uma das que hoje se denominam marchas da resistência, que é uma das numerosas invenções que saíram das cabeças, das mãos e dos corpos das mães da Praça de Maio.
As “Madres” (Madres de la Plaza de Mayo) foi um movimento de invenção de dispositivos de sinalização, de denúncia, de auto-organização, verdadeiramente fabuloso. E uma destas invenções das Madres foi a marcha da resistência, em que consistia a marcha da resistência? Que ainda hoje, ocasionalmente, ocorre. Consistia em tomar a Praça de Maio durante uma tarde, organizar um ato de sinalização, de comunicação política, aguentar toda a noite, e se conseguisse aguentar toda a noite, na manhã seguinte, se marcharia através da Avenida de Maio, seguindo o eixo que leva até o Congresso.
Esta é a imagem geral que oferecia esta marcha da resistência, uma imagem bem estranha, que antes nunca se havia visto. Uma multidão pintando silhuetas e disseminando-as pelos arredores da praça.
Um livro, publicado há uns quatro ou cinco anos, editado por Ana Longoni e Gustavo Bruzzone, com o título de Siluetazo, acabou por nos revelar o que tinha sido uma certa incógnita ao redor de como surge a ferramenta de sinalização dos corpos dos desaparecidos, que foi uma das duas principais matrizes de sinalização dos desparecidos, impulsionadas pelo movimento dos direitos humanos na Argentina. Por um lado, as silhuetas, por outro lado, as fotos dos desaparecidos, que são trazidas nos corpos (ou em alça, em ampliações) dos familiares, filhos, mães e avós pela ditadura cívico-militar.
O livro de Ana Longoni e de Bruzzone nos revela que o Siluetazo foi um movimento idealizado por três artistas, Guillermo Kexel, a quem pertence esta fotografia que estou mostrando, Julio Flores, ambos vivos, e Rodolfo Aguerreberry, falecido.
Eles três tinham pensado, ainda durante a ditadura, em produzir uma obra que servisse para sinalizar o que naquele momento já se manejada como cifra dos presos desaparecidos pela ditadura, a terrível cifra de 30.000 pessoas. Originalmente, iriam apresentar esta proposta/projeto para um prêmio de arte, que depois se cancelou. Não sabiam muito bem o que fazer com este projeto. Porque, de todas as maneiras, não havia como executá-lo, pois tinha uma série de problema práticos, por exemplo, não havia parede suficiente nos museus de toda a Argentina para colocar 30.000 silhuetas em tamanho real. E, por outro lado, não era fácil que três pessoas sozinhas pudessem produzir 30.000 silhuetas em um curto prazo.
Decidem levar a ideia para as Madres da Praça de Maio, que justamente estão preparando a terceira marcha da resistência. As Madres imediatamente adotam o projeto e lhe introduzem uma série de modificações.
O projeto se executa nesta marcha até que finalmente vai-se multiplicando sem saber que originalmente era uma proposta de três artistas. E se adota, como digo, utilizando a linguagem de historiadora de arte Ana Longoni, como uma das duas matrizes principais de sinalização dos desaparecidos até a data de hoje.
Há várias questões para se constatar no Siluetazo, a primeira é que justamente no trânsito de ser um projeto de três artistas a ser adotado pelas Madres e multiplicar sua execução na praça, vemos justamente o momento de extravasamento de um projeto que é uma proposta pensada nos limites dos parâmetros da instituição artística para ser uma proposta que extrapola estes parâmetros e converte-se literalmente numa prática coletiva.
Aí vemos também o fato de que, como vimos antes no caso de ACT UP, e volto a citar a ideia de Brian Holmes de acordo com o qual o valor de uma produção deste tipo é o uso que se pode dar. Aqui vemos isto claramente. O valor das silhuetas é justamente seu uso multiplicável, a propriedade que tem de ser suscetível, apropriada e multiplicada em sua execução como uma imagem de sinalização.
Na conversa que fizemos antes de ontem, alguém se opôs ao Siluetazo, o levantou desde o ponto de vista estético, que são imagens que não têm muito valor desde o ponto de vista pictórico. Chamo a atenção para o fato de que há dois motivos principais que constituem o êxito da multiplicação do Siluetazo como prática de sinalização, e estas duas características são as seguintes:
A primeira, a facilidade em sua execução, o Siluetazo pode se multiplicar e ainda hoje se multiplica como prática de sinalização pela extrema simplicidade de sua execução. Se fosse uma imagem mais complexa de executar, não se poderia multiplicar. O fato de ser extremamente simples, o que para um crítico de arte significaria pobreza como imagem icônica, em termos políticos é justamente este o valor de sua multiplicação, porque pode ser apropriada.
E outra coisa bem importante, falando nesses termos, o Siluetazo desloca o lugar de sua realização para fazê-lo simultaneamente no lugar de sua exibição, dito de um modo muito bruto, desloca o estúdio e o sobrepõe ao lugar onde se exibe. O fato de que a silhueta se faça deste modo, neste lugar, significa que é uma das chaves de sua multiplicação, constitui uma pedagogia de si no espaço público, as pessoas que transitam pelo espaço veem como se executa uma imagem que é extremamente simples de se realizar e somam-se à produção, assim é a produção cooperativa das silhuetas.
Este é um dos casos, que antes mencionei, no qual a eficácia da prática é inversamente proporcional a seu reconhecimento como artística. Se eu pinto uma silhueta incrível no estúdio e a tiro para a rua, como um mural, você diz: “É incrível!”. Mas você não se soma à execução. Se eu e você, que somos artistas, pintamos um mural diretamente na praça e o fazemos com muito virtuosismo, também somos reconhecidos pelo virtuosismo de sua execução, mas é raro que alguém se some para multiplicar esta imagem. Na medida em que a imagem se executa por qualquer um no espaço público, não se reconhece como artística, mas literalmente como uma sinalização, e vê-se claramente, no momento, como é simples sua execução, que isto permite que tenham sujeitos que se somem e, além disso, que a adaptem às suas condições e aos seus limites para reproduzi-las.
Esta é uma imagem de Eduardo Gil, a polícia desorientada justo olhando as silhuetas, não sabem o que fazer. Além do mais, aqui, os policiais não sabem o que é, não sabem o que fazer com isto. Porque nem sequer é uma bandeira que diga um lema político.
Há várias questões para assinalar no Siluetazo, a primeira: transforma completamente o que entendemos por comunicação política. Habitualmente, a comunicação política, em seu sentido mais tradicional de esquerda, utiliza um canal para diretamente/literalmente canalizar uma mensagem. Aqui não há uma mensagem canalizada, não há mensagem literal, algo estão dizendo claramente as silhuetas, algo tem a ver com os desparecidos, mas não é um lema que denuncia algo concreto, digamos que comunica, por um lado, o fato de que a ditadura está exercendo uma prática de desaparecimento, mas, além da comunicação, há algo que produz uma comoção em quem participa das silhuetas e em quem as encontra na rua.
A técnica de execução de silhuetas mais interessante é aquela em que alguém põe o corpo sobre o papel no chão, se siluetea e depois coloca a sua silhueta na parede. Porque aí se produz algo, como apontaram alguns autores, como um exercício de transmissão.
Vejam que o que a prática de desaparecimento procura é literalmente fazer desaparecer um corpo, apagar a identidade de algo, que um sujeito desapareça, desfazê-lo ao máximo. O que faz a silhueta é, através do corpo de alguém que está presente, voltar a dar presença a um corpo que a ditadura fez desaparecer. Aí há algo mais que a mera comunicação de um lema, de uma mensagem. Há algo que, de algum modo, produz uma comunicação entre os sujeitos que não estão e os sujeitos que estão. O corpo daquele que está se dispõe a presentificar alguém através de uma silhueta, que é uma figura genérica; mesmo que em algumas silhuetas se possam incluir os dados de pessoas concretas que foram desaparecidas. Há um elemento interessante.
E outro elemento interessante é que, habitualmente, inclusive a partir dos parâmetros que não são os tradicionais, quando falamos do Siluetazo, tendemos a pensar como a silhueta opera, que efeitos operam na silhueta, e para mim esta imagem que compôs Kexel parece muito interessante, porque aqui vemos que o Siluetazo, para além dos efeitos que poderiam ser produzidos disto como figura, é, na medida que estou propondo hoje, um modo de organização. O Siluetazo é uma forma de organizar o protesto no espaço público. O enquadramento da praça diante do Siluetazo não é igual ao que seria sem ele. O Siluetazo obriga a organizar o protesto de uma determinada maneira, é um modo de organização.
Quando fiz um vídeo, perguntei a Kexel qual tinha sido a metodologia concreta que tinham utilizado para implantar o Siluetazo num primeiro momento na praça e como tinha sido literalmente o processo de multiplicação da execução das silhuetas. É bem interessante, porque comentavam que o que fizeram foi chegar à praça já com as silhuetas produzidas, segundo, chegaram com os rolos de papel que cortariam para produzir as silhuetas e demarcaram o espaço como pontos, no interior dos quais se produziriam as silhuetas. E algumas pessoas que já estavam avisadas, que já haviam colocado as silhuetas, se dispuseram a produzir mais silhuetas, cortando o papel e pondo seus corpos no chão. Imediatamente, começou a se somar gente. Daí vemos que as silhuetas são um modo de organização. Esta prática artística é um modo de organização. E as silhuetas são o resultado de um modo de organizar o protesto.
Comentário do público sobre o Siluetazo continuar sendo uma representação.
O Siluetazo não é uma representação. Para avaliar estas práticas, temos que sair do paradigma da representação. O Siluetazo é uma presença e é um modo de organização, que é diferente de uma representação.
Que quer uma ditadura? Destruir o vínculo social. A ascensão dos fascismos e dos nacionais-socialistas nos anos 1930 é exatamente um instrumento da burguesia europeia para paralisar o desenvolvimento extremo das formas de organização do movimento operário. Bom, isto sabemos, o que procura uma ditadura é romper o círculo social, fragmentar, dividir, individualizar e submeter as formas de cooperação social a uma estrutura piramidal, de mando vertical.
O que faz o Siluetazo em plena ditadura? Através de uma ferramenta, de uma técnica muito simples, restitui o vínculo social, porque, para produzir a silhueta, tem que ter comunicação entre corpos, tem que ter comunicação verbal, tem que ter comunicação política, tem que ter comunicação física, tem que ter comunicação simbólica.
O Siluetazo é uma técnica de restituição do vínculo social, o que não é uma representação, é uma produção em ato do vínculo social. É uma forma de organizar a cooperação, então não a representa, é produção de cooperação. E a silhueta não representa os desaparecidos, não é tanto uma representação dos desaparecidos, em parte é uma representação, mas torna-se mais complexa, porque o que tem aí não é uma silhueta de um desaparecido, é uma silhueta de um sujeito que existe ou uma silhueta de um sujeito que, se não existe, se inventa. Não é propriamente a silhueta de alguém que foi desaparecido, estabelece uma comunicação entre quem não está e os que estamos presentes. Então, para interpretar estas práticas, tem que sair deste paradigma. Não é uma representação da multidão. Não é uma representação da cooperação, é uma “realização em ato”, literalmente a cooperação. É uma produção de multidão em ação, mas não é uma representação.
Eu estou pondo a ênfase não tanto no objeto que vem ao final porque o objeto é um elemento que desencadeia um processo que é só uma parte de um tipo de engrenagem, de um tipo de maquinário. No Siluetazo, o que importa não é tanto o que representa, que função tem ou o que mostram as silhuetas, mas o fato de ser um dispositivo que tem outra complexidade.
É certo que até tem um elemento de representação, pode ser, mas isso é um elemento a mais, um componente a mais de um mecanismo mais complexo. O quê representa a colaboração que se dá entre você e eu na hora de produzir uma silhueta? Aí não há representação, há uma técnica de produção de um vínculo e o Siluetazo é o resultado disto. A chave aí é a reconstrução de vínculo que a ditadura quer romper. Porque, primeiro, a ditadura quer que eu desapareça, quer apagar o sinal da minha identidade; segundo, quer que o meu pai não fale que eu desapareci, que a família não o comente, que se saiba mas não se diga. E daí o que faz o Siluetazo? Restitui o vínculo, produz uma visibilidade que é contrária à invisibilização que a ditadura quer impor. Entretanto, essa visibilidade é o resultado de uma técnica, de uma técnica que organiza a restituição de um vínculo, que é um vínculo de comunicação, de solidariedade, que é um vínculo afetivo, simbólico — essa é a chave, creio.
Se há uma dimensão de representação, é uma parte a mais num maquinário mais complexo. Porque a proposta é sair de nossa fixação com o que opera, com o que faz e significa o objeto, e sobretudo pensar que tanto o objeto quanto sua dimensão de representação são como um componente a mais numa máquina que é mais complexa.
É definitivamente à técnica que temos de ir. O que deduz-se de dois textos históricos de Benjamin dos anos 1930 é que a chave é a técnica. Tem-se que esclarecer a técnica.
Pergunta do público sobre se o Siluetazo pode ser pensado por meio de uma dimensão teatral.
Sim e não. Sim, se estamos falando de uma dimensão teatral se sabemos ler um trânsito histórico no qual o teatro desborda os limites da representação para passar a orquestrar uma encenação onde não há uma representação propriamente, mas uma ação.
Parece-me que os idealizadores do Siluetazo estavam num primeiro momento fortemente influenciados pela Pedagogia do oprimido de Paulo Freire e supostamente pelas formas de teatro que estão vinculadas ao Teatro do Oprimido, no qual justamente não há o teatro como representação, nem uma dissolução do teatro na vida. É a introdução de um elemento de estranhamento na vida através de uma encenação, de um exercício corporal. Isso é o Siluetazo: não é nem uma representação teatral, nem uma dissolução de algo na vida de maneira que não se diferencia da “vida cotidiana”. É o corpo orquestrando uma encenação que introduz no cotidiano um estranhamento. É a técnica de estranhamento brechtiano no interior do cotidiano. Isso é o Siluetazo. Não é uma diferença entre quem olha e a cena, é um solapamento entre quem assiste e a cena. É uma veladura.
O Siluetazo literalmente introduz um estranhamento: a prova são as fotos dos guardas que não sabem o que fazer. Uma manifestação responde à lógica da manifestação e da repressão; o Siluetazo num primeiro momento desestrutura este cotidiano da manifestação. A polícia não sabe o que fazer porque introduziu-se um estranhamento. Aí vamos de novo a algo a que me referia, um desbordamento dos limites das instituições estéticas da modernidade, mas levando consigo as ferramentas que foram características de uma fase experimental ou de laboratório da vanguarda. É levar à cena da “vida cotidiana” as técnicas de estranhamento brechtiano, apagando a cena, apagando o limite entre o público e a cena. Produzindo um estranhamento no cotidiano.
Pergunta do público sobre os objetos produzidos pela Bauhaus.
O princípio vanguardista de dissolver a arte na vida nessas práticas que têm a ver com uma projeção racional ou técnica da prática, seja no Construtivismo ou na Bauhaus, por aí, que se traduzem em levar consigo as ferramentas de organização racional da produção estética para, desbordando o limite da instituição artística, passar a pensar a organização racional da vida, discorrem historicamente, na minha opinião, em dois eixos paralelos de intenções.
O eixo do desenho, dito de um modo bem superficial, introduzido sobretudo pela reconfiguração da ideologia do desenho que estabelece o argentino Tomas Maldonado na Europa, que basicamente consiste em vender este princípio à reorganização neocapitalista europeia depois da Segunda Guerra Mundial. Nesse eixo, o princípio vanguardista de organizar tecnicamente a vida a partir das ferramentas das vanguardas consiste literalmente em colocar a organização técnica da vida ao serviço de desenvolvimento do capital.
E tem o eixo de pensar a verificação dessas ferramentas experimentais no interior dos movimentos sociais.
Estas são duas tensões que historicamente se podem analisar e que chegam até o presente. Tem-se, por uma parte, a organização técnica da vida nas mãos do capital e, por outra parte, a organização autônoma da vida nas mãos dos movimentos sociais. Em ambos os casos, pode-se detectar como estes dois princípios fazem uso das ferramentas experimentais da vanguarda.
Para mim, a fase histórica atual consiste literalmente em reverter o que historicamente fez a ideologia do desenho. Devolver de novo aos princípios da autonomia social o que foi historicamente a colocação dessas ferramentas à valorização capitalista.
Pergunta do público sobre Tucuman Arde e a reclamação sobre o direito autoral das imagens que circulam sobre isso.
É um bom exemplo. Neste caso, vemos que não se pode ser tão rígido na hora de pensar o dentro e o fora na instituição. Poderia parecer que eu preferisse postular aqui o fato de que essas práticas não fossem institucionalizadas, quando na realidade, no caso de Tucuman Arde, se demonstra que a multiplicação de uma prática passa também por disputar no interior das instituições artísticas a forma como se relatam ou se historizam essas práticas. Se podemos falar disto, é porque precisamente Tucuman Arde circulou na instituição artística, o que facilitou justamente sua multiplicação, seu conhecimento, e isso abre um campo para poder disputar essa herança, como a atualizamos ou a reativamos agora. Porque Tucuman Arde oscilou justamente entre as recuperações historiográficas mais banais, mas também as reativações mais interessantes, isso somente porque justamente circulou nos âmbitos museográficos.
Mais do que ter medo dessas questões, há de se pensar essas dinâmicas, há de se disputá-las. A figura do Che para que serve, por exemplo? Para reativar revoluções ou para vender camisetas? Para as duas coisas, uma coisa não invalida a outra. A chave sempre é como essas operações “no interior da instituição” se relacionam com o fora. Cada caso é distinto. São territórios, dinâmicas em disputa.
Uma das caraterísticas dos movimentos do ciclo atual de conflitos, desde o zapatismo em diante, ou melhor, desde o ciclo de revoltas democráticas de 2011 em diante, desde Tahrir até Occupy, passando pelo 15M, pelos movimentos estudantis no Chile, na Colômbia, etc., é sua potência expressiva. A chave dessa expressividade é o desclassamento, ou seja, quando os filhos da classe média ampliada que tiveram acesso e puderam aprender ferramentas de produção simbólicas, expressivas, potentes e complexas, decidiram que não iriam mais pô-las a serviço de nenhuma empresa, mas iriam usá-las para outra coisa. Isso é o que explica a potência expressiva do 2011. A proliferação de cartazes, vídeos, lemas, slogans, formas inventivas de ocupar a praça, de desestruturar a confrontação com a polícia, tudo isso que depois os teóricos e críticos de arte reduzem a vamos “analisar o cartazes de Occupy”. Na realidade, o importante não é o cartaz, mas justamente a proliferação de formas expressivas e a chave aí é que alguém, em lugar de vender o que sabe à empresa, passa a pôr esse conhecimento a serviço dos movimentos sociais.
E isso ocorre porque o capital nas últimas décadas rompeu uma multidão de pactos habituais com a classe média e porque cada vez mais camadas da população mundial enxergam a verdadeira cara do neoliberalismo. E por outra série de motivos, do mais banal aos mais complexos.
Pergunta do público sobre o projeto Las Agencias.
Las agencias são fruto da confluência de um duplo processo, no qual, por um lado, pessoas, setores e grupos de trabalho que vêm tradicionalmente de dentro do trabalho na instituição artística e têm interesse em ampliar as ferramentas clássicas da crítica institucional começam a pensar a abertura do trabalho no interior dessas instituições articuladas com os movimentos sociais. Ou seja, começam a pensar desde a crítica institucional o desbordamento para fora da instituição.
E, por outro lado, há uma confluência disso com pessoas, sujeitos e coletivos que, desde o trabalho tradicional dos movimentos sociais começam a pensar a articulação, o agenciamento, com instituições de uma maneira que os levam a pensar de outra forma o conceito de autonomia dos movimentos.
Eu creio que haja setores do movimento que pretendem realizar um agenciamento, uma articulação, uma experimentação, uma simbiose, com áreas também experimentais da instituição, e setores da instituição que querem pensar a articulação com os movimentos sociais. Esses dois eixos confluem num contexto muito singular que é a eclosão do movimento global, ou movimento contra a globalização neoliberal, que estava em Seattle, que tem seu Seattle europeu em Praga, no ano 2000. E que também se encontra em 2001 em Barcelona, quando se convoca a reunião do Banco Mundial e do FMI. Esta circunstância se dá na medida em que o Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, o MACBA, era uma instituição que particularmente já vinha nesse trajeto via Fundação Tàpies, que já estava pensando em como experimentar com agentes sociais externos à instituição.
E Barcelona era uma cidade que tinha tido uma participação muito marcada no Seattle europeu, que foi Praga no ano 2000. E havia já de fato uma convocatória para fazer um primeiro experimento que foram as jornadas “Da ação direta como uma das Belas Artes”, organizadas originariamente pelo coletivo La fiambrera. Então, já existia a ideia de fazer esse primeiro experimento, um primeiro protótipo de articulação entre a área de abertura dos eixos dos movimentos em direção à instituição cultural, um em relação ao outro, reciprocamente. Daí, surge a possibilidade de fazer um projeto de trabalho que funciona na intersecção entre a instituição e os movimentos. Que não fosse nem os movimentos aproveitando-se da instituição tirando-lhes dinheiro, nem a instituição cooptando os movimentos para renovar ou para reproduzir seu programa cultural. Las Agencias saiu-se relativamente bem, mais ou menos bem…
Pergunta sobre o impacto e as transformações ocasionadas por Las Agencias.
Las agencias nunca foi exposta; são mais desconhecidas que qualquer outra coisa, não estão catalogadas, não há nada. Poderíamos analisar os seus variados níveis de impacto — a nível institucional teríamos que perguntar aos museus, à instituição artística, aos curadores ou gestores, sobre o que eles pensam. Por que não houve uma transformação mais radical da instituição artística na Espanha? Posso pensar que pelo ensino do sistema da arte, mas não é bobagem, é uma pergunta pertinente. Por que há uma maré pela saúde pública, pela educação pública, pelos afetados da hipoteca, e não há uma maré pelas condições da cultura? Porque a cultura acaba tropeçando em si mesma e não gera nenhum dispositivo que permita sua composição com outros. Essas são modificações que efetivamente não foram produzidas num sentido visível. Mas bem, há interpelações para fazer diretamente aos agentes culturais.
Mas em outro sentido menos evidente, não por Las agencias evidentemente, há perguntas que há de se fazer sobre por que os movimentos contra a crise na Espanha, particularmente sendo o impacto da crise o mesmo que na Grécia, ou Portugal ou Itália ou Irlanda, por que aqui particularmente as configurações contra a crise são de uma expressiva complexidade, de uma riqueza política, de uma complexidade também no agenciamento entre instituição e movimentos, de uma complexidade também na hora de colocar-se como estrutura de movimentos que simultaneamente são destituintes do regime, instituintes de uma institucionalidade própria do movimento, e constituinte no que claramente o movimento contra o que a crise está propondo, que é o rebocamento da constituição de 78, e gerar um processo constitucional novo, essa riqueza que é simultaneamente expressiva, política, etc.
O movimento da Espanha, não pode ser por casualidade, não se está dando uma resposta à crise com tanta complexidade igualmente na Grécia, na Itália, ou em Portugal. Digo que não é por Las agencias, claro, mas algo vem passando aqui nos 15, 20, últimos anos que faz que a complexidade contra a crise seja mais esperançosa, mais contundente, mais rica, mais proteica em muito níveis do que está sendo em outros lugares.
Por exemplo, com que relativa facilidade na Espanha agora se aceita em termos de sentido comum na opinião pública o movimento da desobediência civil, ou a ação direta? Qual são os eixos que restituem a política do movimento social em plena penúria da hegemonia neoliberal na Espanha, final dos oitenta, princípio dos noventa? Por uma parte é a ocupação, por outra parte é a insubmissão antimilitarista, e conectando ambas, o feminino autônomo. Quais são as ferramentas pelas quais se exercem esses eixos de recomposição de movimentos? A desobediência civil e a ação direta. Então, não é tão estranho se levamos aqui 25 anos de trabalho político em torno à desobediência civil e à ação direta, não é tão estranho que haja um sentido comum que aceite com relativa naturalidade os escraches da PAH, ou as ocupações pela moradia, ou a ocupação do espaço público pelos acampamentos. Porque, além do evidente, há algo que vai se conformando por baixo em termos de sentido comum; há algo neste sentido comum da sensibilidade compartilhada que resulta que aqui essas coisas passem assim.
Outra vez, não digo que isso tem a ver com Las agencias ou com o 15M, mas que há uma experimentação que se compõe com outras experimentações que dá lugar a coisas que agora mesmo não se pode associar com literalidade porém que faz com que as coisas aconteçam aqui com um grau de complexidade diferente.
O público comenta criticamente o papel dos museus em relação a seus discursos.
É que as instituições culturais, em algum ponto, são irrecuperáveis…
O conceito de significante vazio ou aberto (Chantal Mouffe e Laclau) ajuda a pensar esse processo. Explico com minhas palavras. Os movimentos do novo ciclo se desenvolvem não tanto por somatória de identidades que se mantêm fixas mas por um tipo de articulação que faz com que, na composição, essas identidades se modifiquem simultaneamente. É aquilo que alguém lança e outro sujeito pode adotar justamente significando-o.
É um significante aberto o conceito de “democracia” lançado na Praça Tahrir, no Egito, reapropriado pelo 15M e pelo movimento Occupy. O conceito de “democracia” não quer dizer a mesma coisa nos três casos, mas também não é um significante tão fechado para que se mostre solidariedade somente pelo que os egípcios postulam. Eles lançam algo de que você se reapropria, resignifica, catapulta, ou seja, se resignifica o que se produz. É justamente um encadeamento, uma sequência encadeada num processo de movimento.
Qual é a chave para que se desencadeie um processo de movimento complexo a partir dos protestos dos estudantes no Chile? Quando os estudantes no Chile dizem “gratuidade”, estão dizendo algo que eu, que sou caminhoneiro, que sou motorista de ônibus, ou que sou funcionário da saúde pública, possa abrir-me ao movimento de estudantes de um modo diferente da mera solidariedade. Quando dizem “gratuidade”, abre-me a porta para que eu pense algo diferente de “me solidarizo com os estudantes que têm um problema, o problema das mensalidades ou o problema do endividamento para poder realizar estudos superiores”. Abre-me a porta para que eu possa pensar: o que esses tipos estão dizendo é a chave para pensar o processo de sujeição social do neoliberalismo no Chile através do endividamento pelo encarecimento de algo que deve ser o sentido comum da sociedade: a saúde, a educação, o transporte público. Então “gratuidade” dita pelos estudantes é o mesmo, e ao mesmo tempo diferente, da “gratuidade” dita por mim que sou caminheiro, da “gratuidade” dita por mim que sou funcionário da saúde pública. Aí temos uma imagem clara. O significante aberto é a chave que permite a articulação, o desencadeamento de um movimento por articulação. Democracia é isso.
Uma companheira do Podemos explicou isso muito bem em Madrid. Ela disse que a chave do êxito colocado pelas enfermeiras em Madrid desde a primeira ocupação que elas fizeram num ambulatório deixa bem claro que não estavam ocupando por um problema singular delas. Evidentemente que estavam reivindicando que não as despedissem, mas que a origem daquela demissão como enfermeiras era uma política de cortes que estava desabastecendo a saúde pública e que estava definitivamente dirigida a sua privatização, o que por sua vez afetava a saúde da sociedade como um todo.
O que elas estão fazendo é lançar um significante aberto de maneira que possamos, sem ter um trabalho na saúde publica, solidarizar-nos pela enfermeira mas também lutar pela saúde pública porque isso nos afeta a partir do nosso lugar. Por que luto pela saúde pública? Por que tenho dois filhos que são afetados pela privatização da saúde. Eu luto pelos meus filhos e articuladamente luto pelo posto de trabalho da enfermeira que luta por seu posto de trabalho e articuladamente para que meus filhos tenham saúde pública.
Isso o sistema da cultura não sabe fazer, se manifesta pelos impostos, para que se lhes deem mais lugares para se fazer arte, por coisas que não são significantes abertos, não permitem a articulação com outros, não permitem o encadeamento, e como não permitem o encadeamento, nos veem como sujeitos que reclamamos o nosso. Quando nos manifestamos, quando temos um cartaz bem grande que diz: “Que tem para mim?” Ao invés de como os demais se manifestam com um cartaz bem grande com: “Que tem para todos? Que tem para o comum?”
Público pergunta sobre a greve dos controladores aéreos.
Há uma diferença entre os controladores aéreos dizendo na semana santa “queremos mais salário” e os caras que carregam as malas, que dizem “não posso mais porque estou arrebentado”. Quando reclamo por minha mala, me queixando que estão atrasando para entregá-la e vejo quando sai uma pessoa com olheiras bem grandes e três dias sem dormir, que trabalha por um salário de 300 euros para levar as malas de 25.000 turistas, acabo dando-me conta que o que está me afetando nestes serviços tem a ver com a degradação das condições de trabalho. Daí há a possibilidade de compor, mas se a questão é colocada como “Que tem para mim?”, ninguém vai te fazer caso.
O que houve no ciclo atual é uma composição de experimentações. Às vezes é interessante pensar a relação entre os elementos da ordem de coisas que estamos discutindo não tanto por sua relação literal, mas por sua reverberação. Estamos falando de coisas que não têm uma tradução evolutiva, linear ou consecutiva — tal artista influi a outro ou tal movimento influi outro — estamos falando de experimentações que são complexas, que são truncadas, que parecem que não têm saída, que não têm derivações, que sucedem uma aqui e outra ali. É mais interessante pô-las juntas para pensarmos a ressonância entre umas e outras.
O público pergunta sobre a repercussão de Las Agencias para os museus.
Podemos pensar que repercussão tem Las agencias nos museus, mas também podemos perguntar-nos que relação há entre Las agencias, os escraches da PAH, a ocupação das praças no 15M, o triunfo da maré da saúde em Madrid e os experimentos eleitorais que surgem dos movimentos para fazer uma tomada do poder político? Se pusermos estes elementos juntos e vermos suas conexões, o que daí aparece é mais interessante. Pensar no que umas experiências reverberam em outras, e as conexões que não são literais nem consecutivas, nem claramente evolutivas mas têm ali algo que ressoa, nos permitindo compor um diagrama de situação que é mais complexo, que é mais rico. Porque definitivamente a influência ou não que uma prática tem no museu é de algum modo secundariamente importante. Na realidade, o que isso importa?
O público justifica da importância de pensar o museu como um espaço aberto.
De qualquer forma há de se pensar na redundância, de museu a museu; para talvez pensar desde outro lugar, desde fora, e dispor diagramaticamente todos estes fenômenos para voltar a pensar o museu. Tanto o significante aberto através do triunfo das marés quanto o conceito de democracia no século de XXI nos fazem entender como se reformulou o museu. O problema com o sistema de arte é que é tão redundante, sempre se pensa desde o interior de si mesmo, inclusive a crítica institucional é sempre tão interna ao próprio sistema que redunda, e é por isso que é facilmente cooptável, porque é muito redundante, muito auto-referencial, é melhor pensar as cosas a partir de elementos externos.
Porque, se em realidade alguém pensa no conceito de “democracia” no século XXI, é remetido ao uso deste pelos zapatistas em 1994. O conceito de democracia é um dos elementos de sentido comum do ciclo de conflitos desde os anos noventa até agora. Quando um enxerga as coisas através de outras, pensa em como atuar dentro mas articulando desde fora.
O zapatismo executou as melhores práticas de desvio dos últimos 30 anos; quando na teoria ou na história da arte nos ensinam o desvio situacionista e tal, nem pensem nisso, pensem nos zapatistas, pois eles são um maquinário de desvio, de símbolos e representações de conflito.
O “passamontanhas” é uma recuperação de um signo de uma fase anterior do movimento, que é a luta armada. Que ele significa na tradição da luta armada na América Latina? Ocultamento, clandestinidade e ameaça. E o que o “passamontanhas” significa no zapatismo? Abertura e identidade. Os zapatistas dizem: para que nos olhassem, tapamos a cara, éramos os que fazíamos a comida, os que limpávamos a casa e os sapatos, e não nos olhavam a cara. Para que nos olhassem, tivemos que pô-lo. Então, não é um ocultamento, é um desvelamento.
Quando o governo mexicano quis revelar a identidade de Marcos pensando em fazer merda, convocar uma conferência de imprensa, fazer a publicitação mundial da identidade do subcomandante Marcos, ele se adiantou publicamente e disse “não, eu mesmo vou fazê-lo”, e fez aquele discurso tão bonito, que dizia “Marcos é uma monja da liberação da América Latina, é uma mulher violentada no metrô de Paris, Marcos é um homossexual reprimido em Londres, Marcos é, Marcos é, Marcos é…” Então não é um ocultamento, mas uma visibilizacão. Não é a conformação de uma identidade fechada mas a abertura à composição com a identidade de outros. Que é o que tem aí? A apropriação de um signo que reivindica a memória de uma identidade política mas abrindo-a. Esses são exercícios chaves de desvios no zapatismo.
Por isso é importante a discussão da arte como produção de modos de organização. Com esses exemplos, nos damos conta de que não é uma digressão ociosa. Justamente trata-se de produzir modos de organização que sejam multiplicáveis, articuláveis, apropriáveis por outros.
Se o que está sendo colocado em funcionamento é uma técnica de manifestação ou uma hipótese política que é majoritariamente minoritária, não vale, não serve, por muito em que se empenhe em ter razão. A Chave da ação na qual 20 pessoas invadem um supermercado é que se outras 100, 200, 500, 1000 pessoas quiserem fazê-lo, também podem. Isso é o que dá medo, está se produzindo uma intervenção que é um gesto expressivo, que como técnica é um modo de organização. Essa tática é a sua chave e seu perigo porque essa ação é multiplicável, pode ser desdobrada e articulada com outros. Porque faz com que eu possa me solidarizar em termos de articulação política com essa intervenção feita por outros.
Mas se outras manifestações não o são, não importa discutir a legitimidade ou não da violência; se não multiplica, se é minoritária, se nos faz projetar uma discussão que não nos convém, se efetivamente faz com que respondamos a uma armadilha porque recoloca o modelo poder x contrapoder nos termos que o regime quer, se não é apropriável por outros, se dispersa ao invés de concentrar, daí não sei o que estamos discutindo, não é uma questão de dar ou não razão ao regime com respeito ao que eles querem que façamos. É uma questão de discutir internamente quais são as táticas e as técnicas que nos fazem mais fortes, que nos fazem mais comuns e que são mais comunicáveis.
1 A palestra original pode a ser assistida em
https://www.youtube.com/watch?v=hDMGikv2BYU
2 Usa a expressão tomando el rábano por las hojas.
Este texto foi transcrito e traduzido por Milla Jung com a permissão do autor como encarte para a tese Arte Ocupação, práticas artísticas e a invenção de modos de organização.
Em breve